A ambiguidade

  1. Num texto anterior, esforcei-me por esclarecer o significado do conceito vagueza. Ainda que, por vezes, se confundam, vagueza e ambiguidade são dois conceitos distintos. Um vocábulo (ou uma frase) é ambíguase tem mais de um significado, se se presta a mais de uma interpretação. Exemplo clássico é a palavra banco, que tanto significa um assento como a instituição bancária (ou um banco… de dados). Aqui, é o vocábulo, em si mesmo, que tem várias aceções: trata-se de ambiguidade lexical. Noutros casos, é o contexto ou a estrutura da frase que criam essa ambiguidade (ambiguidade estrutural): a revista brasileira Veja informava, em 1991, que o presidente estado-unidense tinha comido, na Arábia Saudita, “um peru fantasiado de marine” – e nós só saberemos se quem estava fantasiado de marine era o presidente ou o peru, na posse de mais informações.
  2. Os jogos de palavras – um bem de primeira necessidade para a poesia – alimentam-se da ambiguidade. Vem a calhar um belíssimo poema de Alexandre O’Neill que brinca com a ambiguidade homófona do substantivo seios e de formas verbais do verbo saber (sei os e sei-os). Inicia, com estes dois versos, um mais extenso hino aos seios: Sei os teus seios / Sei-os de cor.
  3. Fundos é também termo ambíguo: tanto significa nádegas como dinheiro. Corre por aí que certo brasileiro, ao saber que uma mulher muito gorda se sentara no banco de um autocarro e este quebrara, trocadilhou: “É a primeira vez que vejo um banco quebrar por excesso de fundos”.
    Serve a estória de ilustração à ideia de que a ambiguidade é ingrediente essencial do humor, do entretenimento. Um razão por que rimos é a surpresa provocada por um salto entre sentidos de termos ambíguos: no caso, de banco e fundos.
  4. Como pode ser desfeita a ambiguidade?
    Há uns meses atrás, Manuela Ferreira Leite disse: E até não sei se a certa altura não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia. Tentou amenizar-se a polémica que a suspensão da democracia então provocou, com os costumeiros esclarecimentos: era necessário contextualizar…
    A contextualização é, de facto, um modo de evitar efeitos nocivos da ambiguidade sobre a comunicação: músico tem significados diferentes, de acordo com o contexto, em Emanuel Nunes é um eminente músico português e em Paulo Portas saiu-nos cá um músico!. Mas tenho para mim que, à contextualização, o falante intelectualmente honesto deve preferir a velha sentença medieval: In claris cessat interpretatio (se o que se diz não for ambíguo, dispensam-se interpretações).
  5. A contextualização de declarações ambíguas (particularmente as de políticos profissionais) nem sempre convence ânimos desassossegados: a eficácia da contextualização pode ser dificultada (ou até anulada) pela existência de contextos contrários que sobrevalorizem a força de determinada interpretação. Há dias, Passos Coelho apelou aos portugueses para serem “menos piegas”. Não é fácil “contextualizar” o termo pieguice em favor do primeiro-ministro, quando o contexto dos tempos duros que os portugueses têm vivido se opõe a qualquer interpretação “suavizante”. Ainda que as consequências se não constatem a prazo curto…

Nb1: Já aqui coloquei uma outra ilustração de um discurso ambíguo.

Nb2: Este texto foi publicado na edição 518ª do semanário Jornal do Centro.

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