É possível o livre arbítrio?

Free Will

Porque é que fizeste isso? Alguma vez se terá perguntado”, assim começa a recensão que o The Washington Post dedicou ao último livro de Sam Harris: Free Will (livre arbítrio). Para saber qual é a tese que o famoso e polémico neurocientista defende, pode-se ler a obra, o que, além de ser a opção sempre mais recomendável, não tomará mais do que duas tardes — são pouco mais de 80 páginas — ou pode-se simplesmente ver a capa: as letras, suspensas como marionetas, aparecem presas pelos fios que manejam as cruzetas. O que essa imagem sugere é o que defende o livro: não existe livre-arbítrio, “é uma ilusão”, diz  literalmente o autor. “Não construímos os nossos desejos e apetites. Pensamentos e intenções emergem de causas desconhecidas das quais não temos consciência e sobre as quais não temos controlo”. A biologia predispõe e também dispõe. Amiúde acreditamos, ao rever o nosso passado, que nesse momento poderíamos ter feito outra coisa, tomado outra decisão; não é assim.

Harris apoia-se na sua própria experiência como neurocientista e nas experimentações dos colegas. A tecnologia permitiu, por exemplo, demonstrar que o cérebro toma decisões (há atividade cerebral) antes que estejamos conscientes das mesmas, e os cientistas são capazes de prever e acertar, em cerca de 80%, no que uma pessoa vai fazer, e antes de o fazer. A teoria aponta para um determinismo radical e socialmente incómodo, já que obrigaria a rever um sistema judicial baseado em que cada qual é responsável pelos seus atos. Porque… é o mesmo o caso de alguém que assassina e tem um tumor que lhe afeta certa parte do cérebro e o de alguém que assassina, apesar das suas impolutas biografia e biologia? Uma sociedade que avalia resultados diz que sim; Harris (e certo senso comum) diz que não. A pirueta completou-se: de sentir, em princípio, certo medo da teoria defendida pelo cientista de uma sociedade sem lei, onde cada qual faça o que lhe der na real gana esgrimindo a razão-desculpa de que “o mundo o fez assim”, passou-se a uma comunidade que tenha em conta as possíveis razões prévias dos comportamentos. O resultado será um mundo mais compassivo, bondoso e empático, onde, certamente, não há lugar para a igualdade, porque cada qual é quem é e chega com o seu passado e a sua configuração cerebral.

O que é feito, então, da liberdade? Em que consiste? Harris não nega a sua existência. Concede-lhe uma trégua, uma brecha através da qual pode entrar, se não a capacidade de decisão, a de atuação, sim. Diz que não decidimos o que decidimos, já que disso se encarrega a biologia, mas podemos fazer (ou não) aquilo que decidimos. Nada de novo, por outro lado, pois já Schopenhauer, em Sobre o Fundamento da Moral, disse exatamente o mesmo por outras palavras: “Não há lugar para qualquer ilusão: a lei da causalidade não conhece nenhuma exceção [ … ], e nenhuma verdade é mais certa do que esta, que tudo quanto ocorre, seja pequeno ou grande, ocorre completamente de modo necessário. De acordo com isso, em cada dado momento, o estado global das coisas está firme e exatamente determinado pelo que o acaba de preceder”. O que realmente é novo, e de agradecer a Harris, é o voltar aos inextinguíveis temas clássicos e comprovar que não perderam nem um pingo da sua complexidade, da sua atualidade e, por isso, do seu poder de sedução e discussão.

[tradução do texto Porqué el mundo me ha hecho así?, publicado no nº 25 de Filosofía Hoy]

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