Filosofia do aborto

aborto

Se estivesse certa a afirmação dos antiabortistas militantes de que o embrião é um ser humano, seria verdade que todo o aborto é um delito. Nenhum argumento poderia justificar o assassinato de uma pessoa inocente. Mas é precisamente essa a afirmação que há que discutir. A argumentação dos nossos bispos e daqueles que os seguem aceita como pressuposto que um embrião goza da mesma dignidade que um pai de família. Ora, não se trata apenas de uma questão de tamanho, mas de diferenciar realidades qualitativamente distintas.

Ninguém nega que no embrião há vida. Até há num óvulo ou num espermatozóide, separadamente. Mas o conceito de “vida humana” exige outras condições, que não se limitam à sua definição biológica. No curso da evolução (filogénese), evoluiu-se de organismos unicelulares, como as bactérias, até aos atuais seres humanos, mediante um complexo processo que deu lugar ao aparecimento de novas espécies. Em que momento deste processo se pode falar de vida humana? É claro que não há uma resposta concreta: podem estabelecer-se características diversas como a bipedia, o aumento da capacidade craniana, a oposição do polegar, o uso de utensílios, o aparecimento da linguagem articulada. Todavia, na história evolutiva não existe um instante mágico no qual o que antes era um animal se converte num titular dos direitos humanos. O que não impede que hoje possamos afirmar que os seres humanos gozamos de tais direitos.

O mesmo acontece no processo da conceção (ontogénese). O encontro de duas células, o óvulo e o espermatozóide, inicia um processo de transformações onde vão aparecendo gradualmente as características específicas de um ser humano, sem que possa determinar-se o momento exato que nesse processo dá lugar a um homem ou uma mulher no sentido pleno da palavra. Parece abusivo, contudo, supor que nas primeiras semanas da gravidez, quando ainda não apareceram as notas morfológicas e funcionais próprias da humanidade, se possa falar de um ser humano titular de todos os direitos devidos à sua condição. Assim como também se não pode negar que, uma vez terminado esse processo, estamos em presença de uma pessoa que goza de tais direitos. O limite entre ambos os momentos não consiste num instante exato, mas antes num processo gradual. Partindo deste ponto de vista, uma lei de prazos [ver nota final] como a que temos, que vá outorgando maior proteção ao feto à medida que a gravidez avança e que nas primeiras semanas reserve à mãe o poder de decisão, parece a resposta jurídica mais adequada a esse processo biológico.

A oposição à lei de prazos, por parte dos setores que pretendem converter todo o aborto no assassinato de uma criança, não se preocupa em rebater estas ideias. Simplesmente, aceitam como pressuposto que desde a gravidez estamos em presença de um ser humano que goza em plenitude de todos os direitos dos demais cidadãos. E pretendem fundamentar esta afirmação em razões científicas, que despertam sempre um respeito reverencial entre os leigos. Mas, embora a ciência tenha instrumentos para caracterizar a vida, para a investigar, para descrever as suas funções, não os tem para definir a vida humana no sentido antropológico e ético da expressão, que é mais fruto de um consenso social do que de demonstrações científicas. Que laboratório pode determinar o momento em que um ser vivo começa a gozar da condição humana e por tanto ser sujeito de direitos? O facto de no embrião estar presente o código genético que dirigirá o futuro desenvolvimento do organismo não implica que possa ostentar a condição humana: se assim fosse, qualquer célula poderia exigir a mesma consideração.  Para que exista uma pessoa, é necessário que esse código se desenvolva e gere um organismo com as características morfológicas, funcionais e sociais que definem um ser humano. Um feto no útero não cumpre plenamente essas condições: não completou o seu desenvolvimento e não começou o seu processo de socialização, a sua participação na sociedade, que é a nota característica da espécie humana. Daí que a proteção jurídica que recebe seja menor que a de um recém-nascido, ainda que esta proteção aumente à medida que se aproxima o fim da gestação. Segundo a lei atual, enquanto que nas primeiras catorze semanas [ver nota final] a decisão de abortar depende apenas da vontade da mãe, nas últimas é necessário que existam malformações incompatíveis com a vida ou que o feto apresente doenças extremamente graves e incuráveis confirmadas por uma equipa clínica. Esta perspetiva gradual e progressiva constitui também uma defesa da vida, sempre que não se entenda a vida humana como uma realidade meramente biológica.

Quando a Igreja e os setores que a seguem se opõem a esta distinção entre vida e vida humana, não se atrevem a exprimir os seus verdadeiros argumentos, que são os seguintes. A teologia católica afirma que Deus infunde uma alma imortal no embrião no próprio momento da conceção (embora nem sempre os teólogos tenham defendido esta doutrina, até ao ponto de alguns pensadores antigos rejeitarem que a mulher tivesse alma). Esta alma consiste no que chamam uma “substância incompleta”, quer dizer, uma realidade que necessita de outra (o corpo) para formar um ser completo. Daí que não possam aceitar nenhuma gradação no aparecimento da vida humana: ou se tem alma ou não se tem. E, como afirmam que essa animação se produz no momento em  que o espermatozóide fecunda o óvulo, a conclusão inevitável é que todo o aborto é um assassinato. Mas, como este argumento se baseia em crenças indemonstráveis, preferem falar de um “direito à vida”, com o qual é difícil não estar de acordo: afirmar que se defende a vida soa melhor do que assegurar uma intervenção divina no momento da fecundação. Por trás desta teoria teológica está a tradicional penalização do sexo por parte da Igreja, com a consequente condenação da anticonceção, a masturbação ou a homossexualidade.

É lamentável que, tendo conseguido estabelecer uma legislação razoável sobre o aborto, se volte atrás. E que esse retrocesso se baseie em crenças que podem ser respeitáveis na medida em que não se pretenda impô-las a quem não as partilha.

Em 2010, em Espanha foi aprovada uma lei que permitia o aborto provocado, com prazos: a mulher poderia interromper a sua gravidez até à 14ª semana, sem qualquer justificação. No programa eleitoral com que se apresentou às eleições de novembro de 2011, o Partido Popular incluía a modificação desta lei. É no contexto do debate sobre esta matéria que se inscreve o texto anterior, de Augusto Klappenbach, filósofo e escritor, traduzido do blogue Otras miradas, de El País.

 

 

 

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Scroll to Top