Maio, o mês do coração – 1

** O Homem é razão e coração

(ou, na versão de Edgar Morin, sapiens e demens). Dois modos de ser que nem sempre… puxam para o mesmo lado — di-lo o ditado popular o coração tem razões que a razão desconhece e ilustra-o este soneto de Bocage:

Importuna Razão, não me persigas;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura;
Se a lei de Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas;

Se acusas os mortais, e os não abrigas,
Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas.

É teu fim, teu projeto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo.

Queres que fuja de Marília bela,
Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.

No seu Dicionário de Filosofia, Simon Blackburn (verbete racionalidade) esclarece: “Aceitar uma coisa como racional é aceitá-la como algo que faz sentido, ou que é apropriado, ou necessário, ou que está de acordo com um objetivo reconhecido, tal como chegar à verdade, ou alcançar o bem“. E Fernando Savater (As perguntas da vida, p. 51):

A este exercício de procurar e avaliar argumentos antes de aceitar como bom o que penso saber é o que em termos gerais se costuma chamar de razão. À partida a razão não é simples, não é uma espécie de farol luminoso que temos no nosso interior para iluminar a realidade ou coisa parecida. Assemelha-se mais a um conjunto de hábitos dedutivos, cálculos e precauções, em parte ditados pela experiência e em parte baseados nas pautas da lógica. A combinação de todos eles constitui “uma faculdade capaz — pelo menos em parte — de estabelecer ou captar as relações que fazem com que as coisas dependam umas das outras, e sejam constituídas de uma determinada forma e não de outra” (plagio esta definição — modificando-a a meu gosto — de um filósofo do século XVII, Leibniz).

Esta faculdade (a razão — e não a inteligência: em texto futuro distinguiremos os 2 conceitos) caracteriza o Homem e distingue-o dos restantes animais: há um certo consenso em torno de que o Homem é um animal racional. Mas Edgar Morin tem insistido na ideia do homo sapiens-demens, um ser feito de sabedoria e loucura. Como escreve no Prólogo a Amor, poesia, sabedoria (Lisboa : Instituto Piaget, D.L. 1999, p.9-13):

A ideia que se possa definir homo, dando-lhe a qualidade de sapiens, isto é, de um ser razoável e sábio, é uma ideia pouco razoável e pouco sábia. Homo é também demens: manifesta uma afetividade extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor; traz em si uma fonte permanente de delírio; crê na virtude de sacrifícios sangrentos; dá corpo, existência, poder a mitos e deuses da sua imaginação. Há no ser humano um salão permanente de Ubris, a desmesura dos Gregos.

A loucura humana é fonte de ódio, crueldade, barbárie, cegueira. Mas sem as desordens da afetividade e as irrupções do imaginário, sem a loucura do impossível, não existiria entusiasmo, criação, invenção, amor, poesia.

Do mesmo modo, o ser humano é um animal não só insuficiente em razão mas também dotado de sem-razão.

Todavia, temos necessidade de controlar homo demens para exercer um pensamento racional, argumentado, crítico, complexo. Temos necessidade de inibir, em nós, o que demens tem de mortífero, mesquinho, imbecil. Temos necessidade de sabedoria, que nos pede prudência, temperança, cortesia, desprendimento.

***

Prudência, sim, mas não será esterilizar as nossas vidas ao evitar o risco a todo o preço? Temperança, sim, mas será necessário evitar a experiência da «consumação» e do êxtase? Desprendimento, sim, mas será necessário renunciar aos laços da amizade e do amor?

O mundo em que vivemos é, talvez, um mundo de aparências, a espuma de uma realidade mais profunda que escapa ao tempo, ao espaço, aos nossos sentidos e ao nosso entendimento. Mas o nosso mundo da separação, da dispersão, da finitude, é também o da atração, do encontro, da exaltação. Estamos completamente imersos neste mundo que é o dos nossos sofrimentos, das nossas felicidades e dos nossos amores. Não sentir é evitar o sofrimento mas também o regozijo. Quanto mais aptos estamos para a felicidade mais aptos estamos para a infelicidade. O Tao-tö-Kung diz precisamente: «a infelicidade caminha de braço dado com a felicidade, a felicidade deita-se aos pés da infelicidade.»

Estamos condenados ao paradoxo de conservar em nós, simultaneamente, a consciência da vacuidade do nosso mundo e a da plenitude que nos pode trazer a vida, quando quiser ou puder. Se a sabedoria nos pede para nos desprendermos do mundo da vida, será ela verdadeiramente sábia? Se aspiramos à plenitude do amor, seremos nós verdadeiramente loucos?

Nos textos que seguem, reconhecemos o amor como o cúmulo da união da loucura e da sabedoria, isto é, que no amor, sabedoria e loucura não só são inseparáveis como se entregeram uma à outra. Reconhecemos a poesia não só como modo de expressão literária, mas como o estado, dito segundo, que nos surge da participação, do fervor, da admiração, da comunhão, da bebedeira, da exaltação e, claro, do amor que em si contém todas as expressões do estado segundo. A poesia está liberta do mito e da razão trazendo em si a sua união. O estado poético transporta-nos, através da loucura e da sabedoria, para além da loucura e da sabedoria.

***

O amor é parte da poesia da vida. A poesia é parte do amor da vida. Amor e poesia geram-se um ao outro e podem-se identificar um ao outro.

Se o amor é a união suprema da sabedoria e da loucura, temos que assumir o amor.

Se a poesia transcende sabedoria e loucura, temos que aspirar a viver o estado poético e evitar que a prosa absorva as nossas vidas que são, necessariamente, tecidas de prosa e poesia.

***

A sabedoria pode problematizar o amor e a poesia, mas o amor e a poesia podem, reciprocamente, problematizar a sabedoria. A via aqui encarada, que nela conteria amor, poesia, sabedoria, comportaria nela própria esta múltipla problematização.

Devemos fazer tudo para desenvolver a nossa racionalidade, mas é no seu próprio desenvolvimento que a racionalidade reconhece os limites da razão e efetua o diálogo com o irracional.

O excesso de sabedoria torna-se louco, a sabedoria só evita a loucura misturando-se com a loucura da poesia e do amor.

***

O nosso presente está em busca de sentido. Mas o sentido não é originário, não vem do exterior dos nossos seres. Emerge da participação, da fraternização, do amor. O sentido do amor e o sentido da poesia é o sentido da qualidade suprema da vida. Amor e poesia, quando concebidos como fins e meios do viver, dão plenitude de sentido ao «viver para viver».

Portanto, podemos assumir, mas com plena consciência, o destino antropológico do homo sapiens-demens, isto é, jamais cessar em nós o diálogo entre sabedoria e loucura, ousadia e prudência, economia e despesa, temperança e «consumação», desapego e apego.

É aceitar a tensão dialógica, que mantém em permanência a complementaridade e o antagonismo entre amor-poesia e sabedoria-racionalidade.

[Este é o primeiro de um conjunto de textos subordinados ao tema Maio, mês do coração. O segundo: O coração anda espalhado pelos versos dos poetas].

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