Convidei alguns dos meus amigos para nos revelarem os seus top de 2020: livros, filmes, discos, notícias… o que entendessem que mereceria destaque. Domingos Faria, investigador no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, salienta cinco livros influentes nesse ano.
Em outra ocasião, Domingos Faria já nos confidenciou as suas preferências (musicais, filosóficas,…), aqui.
Cinco Livros de Filosofia de 2020
A filosofia atual tem sido muito fecunda no desenvolvimento de novas teorias, argumentos, e na compreensão dos conceitos e problemas filosóficos. Nunca se publicou tanto filosofia, e com tão boa qualidade, como nos dias de hoje. A título de exemplo, quero salientar apenas cinco livros influentes publicados em 2020 que ilustram esse progresso atual da filosofia.
The Epistemology of Groups
de Jennifer Lackey
(Oxford University Press)
Até recentemente, talvez devido à influência de Descartes, o estudo da epistemologia tinha um foco fortemente individualista. Contudo, alguns filósofos atualmente têm dado atenção à dimensão mais social do conhecimento.
Uma das mais importantes filósofas que se tem dedicado a isso é a Jennifer Lackey e lançou recentemente um novo livro sobre a epistemologia de grupos. Como motivação, Lackey começa por apresentar o conhecido escândalo da Volkswagen, em que se manipularam os dispositivos das emissões poluentes. Neste caso quem é o responsável? A empresa ou os membros individuais? A resposta a essas questões está dependente da forma como se entende a responsabilidade coletiva e outros fenómenos do grupo.
Por um lado, as teorias deflacionistas ou sumativistas sustentam que o fenómeno de grupo (tal como a crença ou responsabilidade de grupo) é inteiramente entendida em termos dos membros individuais e dos seus estados. Por outro lado, as teorias inflacionistas ou não-sumativistas sustentam que o fenómeno de grupo é distinto dos membros individuais e dos seus estados.
A Lackey neste livro desenvolve uma teoria intermédia, tendo como objetivo procurar algum progresso na compreensão das noções cruciais da epistemologia coletiva, como a crença de grupo, a justificação de grupo, o conhecimento de grupo, a mentira de grupo, o testemunho de grupo, etc, de forma a esclarecer se são apenas os grupos, ou só os seus membros, ou ambos que devem ser responsabilizados pelas ações coletivas. Sobre o fenómeno de testemunho de grupo escrevi recentemente um artigo, que está disponível aqui.
The Transmission of Knowledge
de John Greco
(Cambridge University Press)
Neste livro, John Greco desenvolve uma nova teoria da justificação testemunhal. Tradicionalmente, tanto na tradição de Hume como na de Reid, considera-se que todos os casos de justificação testemunhal são epistemicamente homogéneos e prestam-se ao mesmo tratamento teórico. Contudo, Greco neste livro mostra que essa tradição está equivocada e apresenta uma teoria pluralista sobre o testemunho. De acordo com Greco, a partilha de informação de qualidade dentro de uma comunidade epistémica envolve dois tipos de atividades: atividade de aquisição e atividades de distribuição que se traduz em dois tipos diferentes de justificação testemunhal.
Assim, a justificação testemunhal por vezes requer inferência indutiva ou razões positivas da parte do ouvinte, quando o testemunho funciona como fonte de aquisição de justificação, funcionando de forma a admitir informação numa comunidade relevante pela primeira vez. Contudo, noutras circunstâncias, o testemunho pode funcionar de forma a distribuir justificação através da comunidade relevante, fazendo-o sem exigência de inferências indutivas ou razões positivas da parte do ouvinte. Greco aplica esta teoria do testemunho à educação, ciência, e religião. Este filósofo discute este livro aqui.
The Tools of Metaphysics and the Metaphysics of Science
de Ted Sider
(Oxford University Press)
Ted Sider procura neste livro contribuir para a metafísica da ciência, ao estabelecer uma série de ferramentas para essa tarefa. Em particular, ele procura mostrar a utilidade de certos conceitos “pós-modais”, como o de fundamentalidade.
Para ilustrar a sua tese de que as ferramentas “pós-modais” podem ajudar a entender as questões centrais da metafísica da ciência, Sider analisa vários argumentos. Um desses argumentos é sobre a rejeição de indivíduos.
Por exemplo, o argumento tradicional é o seguinte: os indivíduos são totalmente distintos das suas propriedades; se isso é o caso, então os indivíduos não têm propriedades; mas, se isso é o caso, então indivíduos são um tipo de coisa misteriosa; logo, os indivíduos são um tipo de coisa misteriosa.
Contudo, Sider procura mostrar que, com base nas ferramentas “pós-modais,” argumentos deste tipo não são sólidos. Uma recensão recente sobre este livro está disponível aqui.
Suppose and Tell: The Semantics and Heuristics of Conditionals
de Tim Williamson
(Oxford University Press)
O pensamento hipotético é central à vida humana. Um sinal da sua importância é a frequência com que usamos a palavra “se” nas conversas quotidianas, bem como na ciência e na filosofia. Mas como entender o pensamento hipotético e as condicionais?
Tim Williamson neste livro apresenta uma nova abordagem para se entender as condicionais. Nomeadamente ele desenvolve um tratamento heurístico das condicionais, segundo o qual se supõe o antecedente e, com base nisso, se chega a um julgamento sobre o consequente. Ou seja, na condicional “se A então C”, exploram-se mentalmente as consequências relevantes da suposição que A, frequentemente ao imaginá-las. Assim, começa-se por supor A e desenvolvem-se as suas consequências pelos meios apropriados disponíveis (como a imaginação restrita, conhecimento de fundo, dedução, etc).
Se esse desenvolvimento leva a aceitar C condicionalmente, na suposição A, então aceita-se a condicional “se A então C” incondicionalmente. Pelo contrário, se esse desenvolvimento leva a rejeitar C condicionalmente, na suposição A, então rejeita-se “se A então C” incondicionalmente. Uma vez que neste processo está envolvido um grau de incerteza, é apropriado teorizar sobre ela em termos de probabilidades condicionais.
A filósofa Dorothy Edgington fez recentemente uma atualização da sua entrada na Stanford sobre as condicionais com uma breve recensão deste livro (está disponível aqui).
Vagueness: A Global Approach
de Kit Fine
(Oxford University Press)
Kit Fine é um dos filósofos mais importantes a trabalhar o problema da vagueza. Ele é tradicionalmente conhecido por propor e defender a teoria supervalorativista (clique aqui para ver uma introdução). No entanto, neste novo livro, Fine rejeita o supervalorativismo e propõe uma nova teoria.
Agora a ideia central de Kit Fine é que a vagueza é um fenómeno global em vez de ser local. Assim, uma série de sorites (como a de começar com um grão de areia e acabar com um enorme monte de areia) exibe vagueza, embora nenhum dos seus membros a exiba por si mesmo. Por outras palavras, enquanto não se pode negar consistentemente uma instância singular da lei do terceiro excluído, dado que \(\neg (p \lor \neg p)\) é inconsistente, pode-se negar duas ou mais conjunções da lei do terceiro excluído, dado que \(\neg ((p \lor \neg p) \wedge (q \lor \neg q))\) é consistente na lógica de Fine (em que a transitividade falha).
Tim Williamson fez recentemente uma excelente recensão a este livro e está disponível aqui.
Domingos Faria…
…é investigador de pós-doutoramento (FCT Junior Researcher) no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (Grupo LanCog). As suas principais áreas de investigação são Epistemologia e Filosofia da Religião. Realizou o Doutoramento em Filosofia pela Universidade de Lisboa (2017). Podem ver-se alguns dos seus trabalhos, aqui; CV, aqui; o seu blog, aqui e novidades, aqui.
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