Ensaio sobre o entendimento humano

A pretexto da passagem dos 307 anos da morte de John Locke, ocorrida a 28 de Outubro de 1704, transcrevemos, do Dicionário das mil obras de Filosofia de Denis Huisman (p. 158-159. Dados bibliográficos, aqui), uma

Síntese de Ensaio sobre o Entendimento Humano de John Locke

Esta obra é uma reflexão sobre a origem das ideias e dos conhecimentos humanos, ao mesmo tempo que sobre os fundamentos metafísicos da racionalidade. A unidade destas duas problemáticas é necessariamente contraditória na perspetiva do empirismo que Locke inaugura, e de que este ensaio é um marco miliário. Além disso, a parada das interrogações lockianas ultrapassa a dimensão metafísica ou gnosiológica: a moral, a religião, a teologia, encontram-se igualmente renovadas.

O empirismo de Locke começa por uma crítica da teoria das ideias inatas, aquela que o cartesianismo tinha formulado levando-a sem dificuldade a um grau de perfeição dificilmente ultrapassável (livro l). Locke pretende mostrar que o pôr em causa o inatismo não arruina de modo nenhum o valor objetivo das ideias (particularmente no domínio moral). Não existem ideias inatas no espírito humano, é a famosa “tabula rasa”.

O livro II expõe a génese das ideias complexas a partir das ideias simples. Estas podem ter por origem a sensação (é o caso das qualidades sensíveis ou do espaço), a reflexão, ou a intervenção combinada de ambas. No exame do valor objetivo dessas ideias, Locke distingue as qualidades primeiras (que pertencem realmente aos corpos) das qualidades segundas (que apenas existem no sujeito que percebe).

Passivo na recepção das ideias simples, o espírito é activo na formação das ideias complexas. Essa formação pode realizar-se segundo três modalidades de associação: combinação, junção, abstracção. Daí resultam três espécies de ideias complexas: modos, relações e substâncias.

Conhecer é, então, aperceber entre as ideias relações de conveniência ou de não conveniência. Locke analisa as possíveis combinações das diversas relações, assim como os diversos graus de conhecimento que daí decorrem. Por exemplo, as ideias matemáticas ou morais, não remetem para nada diferente delas próprias, não têm que se conformar com uma realidade exterior; o conhecimento adquire, então, a sua certeza da evidência intuitiva ou da demonstração. Quanto aos conhecimentos que remetem para realidades fora de nós, só a experiência pode assegurar-nos da sua objetividade.

A reflexão lockiana sobre a génese das nossas ideias e dos nossos conhecimentos desemboca no exame das funções da linguagem (livro III) e sobre o estudo crítico dos poderes do entendimento humano (livro IV). Nenhum conhecimento legítimo lhe é permitido em certos domínios: a infinidade, a eternidade e, por consequência, a divindade. A teologia é, pois, desqualificada e também a metafísica visto que o nosso entendimento não tem qualquer acesso à essência real das coisas. Não nos é permitido afirmar, por exemplo, que a substância espiritual é distinta da matéria; Deus tinha podido muito bem dar a esta a faculdade de sentir e de pensar.

A influência do Ensaio sobre o Entendimento Humano foi imensa. Não poderíamos sublinhar o suficiente a importância que este livro teve para o Século das Luzes, que fez dele o paralelo filosófico da obra científica de Newton. Traduzido desde 1700 por Pierre Coste, exerceu, em França, em Voltaire e nos enciclopedistas uma influência profunda e durável. Viu-se em Locke aquele que restabelecia os direitos da análise e da observação, após um século de domínio do espírito de sistema (o dos grandes metafísicos do século XVII: Descartes, Malebranche, Espinosa, Leibniz, que, no entanto, influenciaram, eles próprios, as Luzes). Nos Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, Leibniz criticava vivamente o empirismo lockiano. À ideia de «tábua rasa», opunha a fórmula: «Não existe nada no entendimento que precede os sentidos, a não ser o próprio entendimento.» Mas a morte de Locke dissuadiu Leibniz de publicar os Novos Ensaios.

Edição portuguesa: Ensaio sobre o Entendimento Humano (2 vol.), Fundação Calouste Gulbenkian, 1999

Estudo: J. Bennet, Locke, Berkeley, Hume, central Themes, Oxford, 1971.

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