Filosofia da Música: O que é?
Muito resumidamente, a filosofia da música é o conjunto daquelas questões que podemos levantar acerca da música e que não podem ser respondidas por meios sobretudo empíricos, por exemplo, como sucede na história da música ou na psicologia da música. Um exemplo muito claro é quando tentamos explicar o que faz algo ser uma melodia, já que nem todas as sequências de sons constituem melodias. Sem surpresas, é muito difícil responder a perguntas destas, em parte porque tudo o que podemos fazer é imaginar hipóteses e testá-las com argumentos. Se pedirmos a alguém para imaginar um teste empírico para avaliar respostas a esta pergunta, cedo essas tentativas se deparam com a inevitável frustração. Podemos imaginar respostas, mas o único modo de lidar com elas, mesmo que usemos informação empírica (e temos de a usar), é construindo argumentos acerca dos quais não temos como decidir a sua solidez senão… Bom, pensando no assunto.
Outros exemplos de perguntas desse género são:
- O que faz algo ser música?
- Que tipo de “coisa” é uma obra musical?
- O que é isso de a música ter qualidades emocionais?
- O que compreendemos quando compreendemos um trecho musical enquanto música?
- Em que consiste a “autenticidade” de uma execução musical?
- Em que consiste o valor da música?
- Haverá padrões de avaliação que se aplicam a todos os géneros de música, ou cada um destes terá de ser avaliado segundo critérios específicos?
- E assim por diante.
Para iniciação à Filosofia da Música…
…a bibliografia em português, como seria de esperar, não é abundante, mas aqui vai uma lista.
- Eduard Hanslick, Do Belo Musical (trad. Artur Morão), Lisboa, Edições 70.
Esta obra, escrita na década de 1850 por um crítico musical vienense de pendor filosófico, iniciou a tradição do formalismo musical: a ideia de que a música consiste essencialmente em “formas sonoras em movimento” e que todo o valor inerentemente musical consiste em propriedades estéticas estritamente dependentes de combinações de tons e ritmos, e não em conexões entre a música e um “conteúdo” extra-musical, seja ele narrativo ou emocional. O debate entre o formalismo e o anti-formalismo musical está hoje mais vivo do que nunca e as ideias de Hanslick continuam a ser objecto de debate pelos filósofos da música. Duas das obras mais recentes neste debate, Music and Aesthetic Reality, de Nick Zangwill, em defesa do formalismo, e Critique of Pure Music de James O. Young, do lado anti-formalista, são testemunho do impacto contínuo das ideias de Hanslick, da exigência de ou responder aos seus argumentos ou refiná-los (sendo ignorá-los a opção indisponível).
- Vítor Guerreiro (org.), Filosofia da Música: uma antologia, Lisboa, Dinalivro (colecção “filosofia pública”), 2014.
É uma colectânea de oito textos, de diversos filósofos relevantes para a área, divididos em grupos de dois, para quatro temas distintos, ou questões filosóficas centrais acerca da música:
. O que é a música?
. O que é uma obra musical?
. Que relação há entre a música e as emoções?
. Em que consiste “compreender” uma sequência de sons como “musical”?
Reune contributos de: Jerrold Levinson, Andrew Kania, Stephen Davies, Julian Dodd, Jenefer Robinson, Nick Zangwill, Roger Scruton e Malcom Budd, além de uma introdução à área, a cada tema e a cada texto, mais um glossário de termos e sugestões de leitura ulterior.
- António Lopes, O Valor de um Bach Autêntico: um estudo sobre o conceito de autenticidade na execução de obras musicais, Lisboa, FCG, 2010.
Este livro investiga uma das questões que ficaram de fora no leque de tópicos da antologia anterior: o da autenticidade na execução de obras musicais. O conceito de “autenticidade” é complexo e abrange questões que vão da existência de obrigações morais dos intérpretes para com os compositores – relacionado com a ideia de “autenticidade histórica” na execução de peças da chamada “música antiga” e do movimento artístico a que deu origem — a noções de autenticidade que podem entrar em conflito com esta ideia.
- No site Crítica na Rede…
… pode-se encontrar uma diversidade de artigos traduzidos, relevantes para a área. Isto inclui desde artigos introdutórios propriamente ditos, até artigos que supõem um pouco mais de familiaridade com a bibliografia e discussões da filosofia da arte em geral e da música em particular. Deixo aqui a ligação para o que me parece ser o ponto de partida ideal nesses artigos. O leitor poderá explorar os restantes navegando no separador de “Estética” da mesma página:
- Peter Kivy, “Filosofia da Música”, Crítica na Rede, 2010.
- No pouco afortunadamente intitulado Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes, de Roger Scruton,…
…traduzido para português na Guerra & Paz, o Capítulo 11 – “Música” – é uma espécie de resumo da teoria de Scruton sobre os sons como eventos “puros”, a audição acusmática e a distinção fenomenológica entre “som” e “tom”. É uma exposição mais breve da mesma teoria que o leitor pode ver explicada por Scruton num dos artigos que constam da antologia referida atrás: “Compreender a Música”. Scruton argumenta que a experiência musical não é apenas experiência de sons mas essencialmente de coisas que escutamos nos sons, ou seja, que há um tipo de experiência sonora peculiar envolvida no acto de seguir uma sucessão que não é apenas acústica mas rítmica, melódica ou harmónica; que este tipo de experiência tem de ser apropriadamente distinguido da experiência de escutar sons naturais ou aleatórios ou outro tipo de sons não primariamente musicais, mesmo que os escutemos com atenção às suas propriedades estéticas. Escutar música nos sons implica um investimento peculiar da imaginação, que não é o mesmo que fazer associações livres. Por exemplo, não conseguimos deixar de escutar movimento nos sons que são música.
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[texto de Vítor Guerreiro, escrito para O meu Baú. Como ficou dito numa “entrevista“, onde revela algumas das suas preferência (musicais, filosóficas…), o autor é tradutor, licenciado em filosofia, tendo completado o doutoramento na área de estética/filosofia da música.
Esta é a terceira publicação de uma série pensada para quem decida entrar em determinadas áreas: da filosofia, da música, da história… A segunda, A história do rock em 10 discos marcantes, é de Rolando Almeida. A quarta é de Jorge Humberto Dias: Aconselhamento filosófico e felicidade]