A filosofia, os homens e as mulheres

Numa citação que anda por aí a circular, Giovanni Papini defende que

Entre a filosofia e o amor não há possibilidade de convivência. A filosofia exila a mulher e a mulher exclui a filosofia. Os filósofos são todos cérebro sem coração nem testículos. Aqueles que tiveram mulheres e filhos são filósofos menores, em segunda mão. Os maiores são todos misóginos.

A filosofia tem relação com a castidade: quem se aproxima da mulher não pode alcançar o absoluto. Os filósofos foram eunucos, como Orígenes e Abelardo; ou virgens por eleição, como São Tomás e São Boaventura; ou eternos celibatários, como Platão, Espinosa, Kant, Schopenhauer, Nietzsche, como todos os maiores. Quem teve mulher, como Sócrates, considerou-a empecilho e tortura.

São antes sodomitas, como Séneca e Bacon, ou onanistas, como Rousseau, Kierkegaard e Leopardi – em todos os casos, antifemininos. A mulher é a vida e a filosofia uma espécie de morte; a dona é o primado do sentimento e a filosofia quer ser racionalismo puro; a mulher é capricho e novidade e a filosofia ordem e sistema.

No entanto, a filosofia não se pode vangloriar de vencer, com a sua força, a tentação de Eros – é verdade, ao invés, que a frigidez e a impotência predispõem para a filosofia. Se virem um filósofo marido e pai feliz, desconfiem da sua filosofia – pode ser, quando muito, professor ou vulgarizador de metafísica, mas de modo algum um criador de sistemas.

[Pormenor de “Escola de Atenas”, de Rafael (séc. XVI).
Será a filosofia coisa de homens? de misóginos?]

Trata-se, parece-me óbvio, de uma tese polémica, sobretudo se formulada de modo a abranger todos os filósofos (“a filosofia tem relação com a castidade: quem se aproxima da mulher não pode alcançar o absoluto”) e não apenas os mencionados por Papini. Será a filosofia tarefa masculina? Serão os filósofos seres misóginos? Para agudizar o problema, deixo outro texto, traduzido de La filosofía contada con sencillez de Javier SÁDABA (Madrid: Maeva Ediciones, 2002, p. 18-20. Negritos meus):

O quê dizer sobre o filósofo como homem ou como mulher? Antes de mais, apesar da abundante bibliografia que nos últimos tempos pretende fazer justiça às mulheres filósofas, há que assinalar que é um facto que os filósofos que deixaram marca e nos condicionaram e condicionam com a sua influência foram homens. Tanto assim é que o escritor Graves pensava que a filosofia, na sua origem, é uma rebelião do homem prosaico contra o feitiço de uma sociedade pré-indoeuropeia, amamentada culturalmente pelas deusas mães. A filosofia seria o último golpe de misericórdia contra a poesia do feminino, contra aquela idílica Velha Europa à qual a lógica dos gregos impõe, por fim, a cultura da razão face à muito mais ampla vida do coração. Neste sentido Sócrates, ao afastar de junto de si a sua mulher Xantipa quando estava para morrer, constituiria o símbolo mais conseguido da vitória do masculino face ao feminino. Penso que a interpretação em questão, por muito atrativa que possa ser, é uma meia verdade, porque o poder do homem sobre a mulher, pelo menos no que à parte superficial da sociedade se refere, não é um assunto que diga respeito apenas à filosofia. Também não acredito que a filosofia seja a última justificação da ascensão masculina aos postos de comando. O fenómeno não é tão simples. Em qualquer caso, não há outro remédio senão conceder que a filosofia, tal como a ciência, cozinhou-se entre homens e que, como tudo e felizmente, as coisas começam a mudar a maior velocidade do que poderíamos prever.

São os filósofos seres intratáveis? Ou são antes uma espécie algures situada entre o monge e o cientista? O filósofo pode parecer um personagem brumoso, obscuro, com um estranho relacionamento com o mundo. Um personagem, em suma, difícil e atípico. Em parte é verdade. Schäferstein, num brilhante livro sobre a vida dos filósofos [Los filósofos y sus vidas. Cátedra: Madrid, 1984], oferece um quadro bastante ilustrativo. De vinte e dois ilustres filósofos, apenas oito se casam. Além disso, são de todos conhecidas as palermices que das suas plumas saíram no momento de falar das mulheres. Nietzsche aconselhava-nos a levar chicotes quando fôssemos com elas; Schopenhauer colocou os pensamentos femininos em relação inversa com o comprimento dos seus cabelos; Hume considerava-as oportunas naquelas reuniões em que as conversas descambam para o frívolo, e Descartes dizia, é fácil supor que com tonta malícia, que queria escrever de modo tão claro que até as mulheres o compreendessem. Nenhum dos citados, certamente, manteve uma relação estável com uma mulher. Os filósofos, em geral, quando falaram sobre a mulher ou sobre a guerra brilharam. Ou, para ser sinceros, caíram no ridículo.

A filosofia é uma atividade apaixonada. Creio ser essa uma das razões para os filósofos permanecerem celibatários. Responder-me-ás que os artistas ou os cientistas são igualmente indivíduos dedicados de corpo e alma às suas obras e investigações. É verdade, só que cada atividade produz as suas próprias reações. E do mesmo modo que o cientista e o artista se comportam de maneira bem distinta (basta comparares um Picasso com um Planck), também o filósofo reage de modo particular. Talvez em filosofia se junte a parte erótica com o pensamento e se produza uma criação interna que não encontra paralelo na obra de arte ou na experimentação. Talvez o filósofo pense que, como Aladino com a lâmpada, vai encontrar a pedra filosofal ou as Ilhas Encantadas. Exagera, sem dúvida. Mas por trás do exagero aparece a disposição para um saber sem limites, a vida dedicada à verdade, aconteça o que acontecer. Dizia Heidegger que o pensador é aquele que dá que pensar. Efetivamente, dar que pensar é entrar numa nora de pensamentos que não param. Dir-me-ás que, então, lhes falta um parafuso. Responder-te-ei que esse é um perigo. Acrescento, no entanto, que tudo o que verdadeiramente nos interessa está à beira da rutura pessoal, inclusivamente do patológico. Por isso estou disposto a desculpar as estridências dos filósofos em questão. Tiremos-lhes a casca da sua demasia, do seu entusiasmo ou da sua unilateralidade, e ficaremos com o humano, demasiado humano que, em última análise, a todos nos retrata. A extravagância do filósofo é como a do enamorado, como a do vidente ou a daquele que descobriu um novo mundo. Se os reduzirmos a uma mais moderada situação, tê-los-emos a mostrar-nos, como num espelho, o que a todos nos interessa. Para além do mais, e para não cairmos no mito da extravagância, há filósofos, como B. Russell, que casaram várias vezes, estiveram implicados na luta contra a guerra e por isso bateram com o costelame na prisão.

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