- Pergunta-me um amigo, o meu melhor amigo, se o étimo de livro é o mesmo de liberdade. A pergunta faz sentido: nós, os que aprendemos umas coisas de latim, sabemos que, ao livro, os romanos chamavam liber — e um homem livre era “igualmente” liber.
Contudo, só aparentemente é o mesmo liber. Na verdade, trata-se de dois liber… diferentes. Digamos, homónimos:
- o liber étimo de livro designa a entrecasca — a película que se encontra entre a madeira e a casca exterior — sobre a qual se escrevia, antes da descoberta do papiro (o nome manteve-se, depois de se deixar de escrever aí); o outro liber, o que dará origem à libertas latina e à nossa liberdade, é adjetivo e tem o significado de aquele (pessoas, cidades, povos) ou aquilo (coisas ou abstrações) que é livre.
- os dois liber “confundem-se” apenas no nominativo (e nominativo masculino, no caso do adjetivo: o feminino é libera); basta atendermos ao genitivo e as confusões desfazem-se: libri, no caso do étimo de livro — liberi, no caso do adjetivo.
- Bem… resta-nos a hipótese de ligarmos o livro e a liberdade através da ficção… etimológica. Ou da não-ficção histórica: não faltam exemplos ilustrativos das ameaças que o livro constitui para as ditaduras. Para só dar um exemplo, pela negativa, recorde-se o Índex (suprimido pelo Papa Paulo VI em 1966), a lista pública das obras declaradas pela Igreja como contrárias às verdades da fé e que os fiéis estavam proibidos de ler.
- Fahrenheit 451 é um romance de Ray Bradbury em cujo enredo são proibidos todos os livros (451 é a temperatura, em graus Fahrenheit, a que o papel incendeia, equivalente a 233 graus centígrados), todas as opiniões próprias e todo o pensamento crítico.
A síntese da versão espanhola da Plaza & Janés: Fahrenheit 451 oferece-nos a história de um sombrio e horroroso futuro. Montag, o protagonista, pertence a uma estranha brigada de bombeiros cuja missão, paradoxalmente, não é a de dominar incêndios mas antes a de os provocar, para queimar livros. Porque no país de Montag foi terminantemente proibido ler. Porque ler obriga a pensar e no país de Montag foi proibido pensar. Porque ler impede de ser ingenuamente feliz, e no país de Montag há que ser feliz à força…
- O problema dos ditadores é que, mesmo que porventura conseguissem queimar todos os livros físicos, continuar-lhes-ia vedado o acesso a outros livros: os que estão na mente.
Continua para mim um mistério o porquê desta nossa tendência humana para decorarmos livros, em particular os poemas. Recordo a história contada por Alberto Manguel (Uma história da leitura. Presença) de um famoso erudito que sabia de cor muitos dos clássicos e, durante o tempo que passara no campo de concentração alemão de Sachsenhausen, se oferecera como uma espécie de biblioteca para os seus camaradas lerem. É o que acontece igualmente no final de Fahrenheit 451: os livros não existem em papel, mas na mente.