Nietzsche: das três metamorfoses do espírito

Uma das tarefas centrais da filosofia de Nietzsche é a luta contra os valores vigentes — contra o pretenso objetivismo do homem de ciência, contra o espírito decadente do cristianismo. Como alternativa a esses valores, Nietzsche propõe a vida como norma e valor supremos:

“a vontade de viver é o maior desmentido possível à objetividade, ao igualitarismo, à piedade e compaixão cristãs” (FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía. Tomo II. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, p. 286).

Esta vontade de viver supõe, por um lado, a crítica dos referidos falsos valores e, por outro, a superação do Homem (da “vergonha” que é o Homem) e a ereção de um novo modelo de Homem, o super-Homem

[“Eu vos anuncio o Super-homem!”, proclama Zaratustra, no preâmbulo de Assim Falava Zaratustra, §3],

situado para além da moral, face à qual afirma a virtù do renascimento italiano.

 

NIETZSCHE:   as três metamorfoses do espírito

O super-Homem é o fruto de três transformações do espírito

(em camelo, em leão e em criança),

tal como são descritas no seu livro Assim Falava Zaratustra ([Lisboa/Madrid]: RBA Editores, [1994]):

“Vou dizer-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.

Há muitas coisas que parecem pesadas ao espírito, ao espírito robusto e paciente, e todo imbuído de respeito; a sua força reclama fardos pesados, os mais pesados que existam no mundo.

‘O que é que há de mais pesado para transportar?’ — pergunta o espírito transformado em besta de carga, e ajoelha-se como o camelo que pede que o carreguem bem.

‘Qual é a tarefa mais pesada, ó heróis’ — pergunta o espírito transformado em besta de carga, a fim de a assumir, a fim de gozar com a minha força?

Não será rebaixarmo-nos, para o nosso orgulho padecer? Deixar refulgir a nossa loucura para zombarmos da nossa sensatez?

Não será abandonarmos uma causa triunfante? Escalar altas montanhas a fim de tentar o Tentador?

Não será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento, e obrigar a alma a jejuar por amor da verdade?

Ou será estar enfermo e despedir os consoladores e estabelecer amizade com os surdos que nunca ouvem o que queremos?

Ou será submergirmo-nos numa água lodosa, se esta é a água da verdade, e não afastarmos de nós as frias rãs e os abrasados sapos?

Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma que nos procura assustar?

Mas o espírito transformado em besta de carga toma sobre si todos estes pesados fardos; semelhante ao camelo carregado que se apressa a ganhar o deserto, assim ele se apressa a ganhar o seu deserto.

E aí, naquela extrema solidão, produz-se a segunda metamorfose; o espírito torna-se leão. Entende conquistar a sua liberdade e ser o rei do seu próprio deserto.

Procura então o seu último senhor; será o inimigo deste último senhor e do seu último Deus; quer lutar com o grande dragão, e vencê-lo.

Qual é este grande dragão a que o espírito já não quer chamar nem senhor, nem Deus? O nome do grande dragão é ‘Tu deves’. Mas o espírito do leão diz: ‘Eu quero.’

O ‘tu deves’ impede-lhe o caminho, rebrilhante de ouro, coberto de escamas; e em cada uma das suas escamas brilham em letras de ouro estas palavras: ‘Tu deves.’

Valores milenários brilham nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim:

‘Em mim brilha o valor de todas as coisas. Todos os valores foram já criados no passado, e eu sou a soma de todos os valores criados.’ Na verdade, para o futuro não deve existir o ‘eu quero’. Assim fala o dragão.

Meus irmãos, para que serve o leão do espírito? Não bastará o animal paciente, resignado e respeitador?

Criar valores novos é coisa para que o próprio leão não está apto; mas libertar-se a fim de ficar apto a criar valores novos, eis o que pode fazer a força do leão.

Para conquistar a sua própria liberdade e o direito sagrado de dizer não, mesmo ao dever, para isso meus irmãos, é preciso ser leão.

Conquistar o direito a valores novos, é a tarefa mais temível para um espírito paciente e laborioso. E decerto vê nisso um acto de rapina e de rapacidade.

O que ele amava outrora, como bem bem mais sagrado, é o ‘Tu deves’. Precisa agora de descobrir a ilusão e o arbitrário mesmo no fundo do que há de mais sagrado no mundo, a fim de conquistar depois de um rude combate o direito de se libertar deste laço; para exercer semelhante violência, é preciso ser leão.

Dizei-me, porém, irmãos, que poderá fazer a criança, de que o próprio leão tenha sido incapaz? Para que será preciso que o altivo leão tenha de se mudar ainda em criança?

É que a criança é inocência e esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira por si própria, primeiro móbil, afirmação santa.

Na verdade, irmãos, para jogar o jogo dos criadores é preciso ser uma santa afirmação; o espírito quer agora a sua própria vontade; tendo perdido o mundo, conquista o seu próprio mundo.

Disse-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se mudou em camelo, o camelo em leão, e finalmente o leão em criança.”

Assim falava Zaratustra, e morava nesse tempo na cidade que se chama Vaca Malhada.
(p. 25-26)

*****

Proponho-lhe

  • uma análise do texto de Nietzsche: de que são símbolos, respetivamente, o camelo, o leão e a criança? que valores simbolizam cada um deles?
    (se isso ajudar, pense: qual deles representa o ascetismo, o deserto, os imperativos morais, a vontade própria, a negação da transcendência, a inocência, a criação de valores,…).
    Encontra na Internet várias análises, com as quais pode confrontar/complementar a sua: esta, por exemplo;
  • uma crítica ao mesmo texto: concorda com Nietzsche?

[ilustração copiada daqui]

2 thoughts on “Nietzsche: das três metamorfoses do espírito”

  1. Bom dia
    poderia me dar informações sobre a figura (ilustração) do camelo/leão/criança apresentado nesta pagina?
    Autor, data, interpretação? Seria as costas do camelo um seio materno? Obrigado desde ja.

  2. Pingback: O teorema de Kubrick-Clarke: o que podemos frente aos algoritmos? | Horizontes Afins

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