Retirada do livro Coleccionador de Absurdos, com a biografia das duas ou três infâncias do coleccionador. 1ª ed., 1978, p. 131, a opinião do escritor sobre o fado:
A natureza corou de vergonha
Em tempos que já lá vão, sumidos nos abismos com passos de fumo, encontrei no estrangeiro um grupo de pessoas que me pareceu muito interessado no fado.
– Lemos num texto dum poeta surrealista francês, suponho que do Éluard – explicaram-me – um grande elogio à vossa fadista Adelina Fernandes. Gostaríamos de saber como é o fado. Não nos poderá dar uma ideia?
– Ora essa! Porque não? Todas as ideias.
E com a voz mais roufenha possível estrugi, com estilaço bárbaro, o antigo Fado do Bacalhau tão coincidente com a minha adolescência (adolescência igual a perder tempo):
Mais um crime para o jornal, etc.
Resultado: todos começaram a rir com escândalo – basta! basta! – com as mãos nos ouvidos, para não ficarem arranhados por dentro.
– Não riam! – intimei-os, melindrado. – Não riam da alma da minha Raça!
Mas como provavelmente já perceberam, este meu protesto não passava de cinismo, pois quem duvidava que eu tinha destorcido o fado até à rouquidão mais extrema, para desacreditar essa canção -nascida nas cavalariças e no cuspo de boca cava de boleeiros?
Desde então a minha hostilidade contra o faduncho não parou de crescer. Por fim, tornou-se tão manifesta que num período felizmente curto dos anos 30 cheguei a ser considerado, nas liças pseudo-intelectuais lisboetas, o inimigo n.° 1, quase oficial, do Fado. Creio que obtive essa honrosa posição graças apenas a meia dúzia de comentários irónicos insertos em crónicas inofensivas, que suscitaram logo vários ataques desabridos nos semanários que então defendiam, pungentemente bravos, a Canção Nacional. Travei também nessa ocasião uma polémica doce com o Leitão de Barros a propósito de A Severa (talvez, por eterna vergonha minha, para fazer reclamo ao filme).
O mais curioso é que justamente no momento das arranhadelas desses defensores, que por pouco não me acusavam de traidor à pátria só porque não ajoelhava diante desse miserando produto de baixíssimo sentimentalismo musical barato, eu já não era um adversário absoluto do fado. Bem pelo contrário. Descobrira, de súbito, numa noite de taberna autêntica que os versos dessa canção, proveniente dos tempos da Lisboa libertina, se me afiguravam, com algum optimismo, a única criação viva e visível de certas camadas populares citadinas. Somente nessas quadras – pensava eu – cantadas à guitarra, o povo da cidade exprimia as suas dores, os seus sonhos e anseios, através de uma linguagem cifrada em que entravam as pegas de touros, o vinho tinto, as sardinhas assadas, os convívios nas hortas com fidalgos de raça e cidades oníricas cercadas, onde as mães para salvarem os filhos do inimigo iam entregar-se como reféns… Tudo isto misturado com uivos e dores de barriga.
Mas, senhores! Os equívocos que a minha inesperada mutação provocou!
Certa tarde, por exemplo, apresentaram-me a um escritor muito ardente e simpático que acabara de desancar a Canção Nacional num livro em que as minhas crónicas-panfletos figuravam em lugar de honra.
A cara que ele fez, quando, respondendo a um cumprimento amável do antifadista, me vi obrigado a confessar-lhe com seriedade irónica:
– Mas eu já não combato o fado.
– Não ataca o fado?
– Não… Mudei de opinião.
– Ah! – atordoou-se o infeliz e justo inimigo da lamechice portuguesa.
E calou-se a enterrar no silêncio as palavras amargas com que, por certo, condenava aquela traição.
Aliás o meu deslumbramento pelas letras dos fados não durou muito. Como era de prever não tardei a descobrir que a comercialização das Casas de Faduncho Rigoroso e a acção repressiva vinda de vários lados começava a sufocar tudo o que era vivo e actual no fado. Pouco a pouco desaparecia aquele encanto momentâneo de sonhos e anseios populares, rimados ingenuamente, substituído por quadras comerciais, feitas de encomenda para agradar às almas pequeninas da plebe verdadeira que por aí anda a fingir de gente.
Por fim essas letras decaíram de tal forma que assisti, num fim de semana em Sintra em casa dum amigalhaço, ao seguinte episódio fantástico que não sei se terei coragem de contar. (Não o sonhei, juro.)
Estava eu estirado na melhor cadeira de repouso da varanda, a olhar sonolento para a paisagem de árvores em redor, quando principiei a ouvir, num aparelho de rádio ao longe, a melodia dum fado, muito saltitante e repenicadinho que logo, com o automatismo habitual, me esforcei por não ouvir. Mas ouvi. Sobretudo os versos que me picavam por todos os lados como vespas vorazes.
Em vão os sacudi, para não ficarem na memória. Mas isso sim! Agarravam-se teimosos e agudos. Sobretudo os que acabavam em «inhas». «Ginginhas», «lingrinhas», «tabuinhas», «tainhas», «tinhas», «pinhas», «Mariquinhas», «morrinhas», «pinguinhas», «vinhas», «ex-rainhas», «peixe com espinhas», «pilinhas», «sardinhas», «tristes viuvinhas»…
E então aconteceu o imprevisto. No canteiro de malmequeres brancos do jardim em frente as flores começaram a ter um estranho tom róseo. Ao mesmo tempo a relva ao lado do caminho avermelhou-se. E os troncos das árvores mais próximas pareciam pintados de sangue…
Não havia dúvidas. A Pátria física, a pátria dos arbustos, dos pinhais, das flores, dos canteiros, das florestas, dos lírios, das pedras, das montanhas, dos malmequeres, do musgo, corava de vergonha…
A nossa bendita terra que espera agora pacientemente que os homens também comecem a corar – como certos poentes do terrível vermelho que é a cor da vergonha e das bandeiras contra os crimes sem vergonha.
Nessa ocasião, a Terra vista de longe deverá parecer a Lua quando surge no horizonte enorme e ensanguentada com um punhal de sol nas entranhas.
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…um texto claramente polémico. À espera da opinião do leitor — disponha da caixa de comentários!
Entretanto, pode recordar… A Casa da Mariquinhas: 😉
O texto foi publicado em 1978, acreditando eu ser de feitura anterior. Grosso modo, corresponde à minha maneira de pensar. A alteração – e aqui a centralização é feita no Fado de Lisboa – dá-se com a chegada pela mão e voz de Amália de compositores de qualidade e dos grandes poetas ao fado. Diz-se que aos próprios acompanhadores da diva não agradava a arquitectura musical de muitas das coisas que ela quis cantar a partir do final da década de 50. Musicalmente, sobretudo com o advento do Alain Oulman. Daí para a frente, mesmo não fugindo às temáticas, o Fado em geral começou a ter um tratamento, digamos, mais “gourmet”, adquirindo uma muito maior complexidade semântica, de composição e mesmo quanto às técnicas interpretativas. Adquiriu, em suma, um “upgrade” qualitativo de grande relevo que permitiu, incluso, um lugar central na chamada música do mundo, dentro da classe do folclore urbano que indiscutivelmente é. Abraço.