- Em Saffron Park, situado a poente de Londres, Lucian Gregory, o poeta anarquista de cabeleira vermelha, reinou sem rival, por muito tempo. A sua hegemonia terminou com a chegada de um novo poeta, Gabriel Syme, que de imediato contrariou a teoria da indisciplina da arte e da arte da indisciplina, defendida pelo poeta estabelecido. Na realidade menos tímido do que aparentava, avançou mesmo até à afronta de pôr em causa a sinceridade do anarquismo de Gregory.
Assim se podem resumir as primeiras cenas do enredo de O Homem que era quinta-feira (de 1908), de G. K. Chesterton (1874-1936) [Lisboa: Alêtheia Editores, 2012]. Nada de interessante, pareceria – mas cedo as linhas da intriga se enredam, quando Gregory faz questão de mostrar ao adversário quão sério é o seu anarquismo. Antes de o introduzir na sala clandestina onde se reunirá o Conselho Anarquista da Europa Central, exige a Syme, sob juramento, que jamais denunciará a alguém, especialmente à polícia, as revelações que lhe irão ser feitas. Já na sala de reuniões, e antes da chegada dos restantes elementos do grupo, Syme exige, em troca, outro juramento: Gregory jamais denunciará a alguém, especialmente aos anarquistas, um seu segredo. Selado o compromisso, Syme faz saber que é… agente da Scotland Yard.
- Como, pelo que fica escrito, se adivinha – o mais famoso romance de Chesterton entretece-se com um fluido, divertido e complexo jogo (do género policial) entre o ser e o aparecer. A reunião do Conselho Anarquista (cujos sete membros tomam o nome dos dias da semana e é presidido pelo Domingo) tem como objetivo eleger o sucessor de Quinta-feira, morto subitamente. Antes mesmo da própria votação, é mais do que certo que Gregory será o eleito; melhor, era: para dar a conhecer a Syme o menos possível dos planos da Organização, Gregory decide fazer um discurso brando – e o polícia disfarçado (“oficialmente” delegado anarquista) contra-ataca, num discurso que rejeita essa brandura e se propõe como candidato com um plano de ação duro… e acabando por ser eleito para o lugar de Quinta-feira.
- Temos, assim, num cenário onírico e surrealista, um agente secreto (que cedo descobrirá não ser o único infiltrado no Conselho) a lutar, disfarçadamente, contra uma organização que ele próprio, na realidade, representa. Como (se) pode desenvolver, assim, a sua ação? O meu leitor o descobrirá ao longo das páginas do romance. Em cada uma delas, encontrará o humor sério, muito bem tecido e por vezes paradoxal, de um escritor subvalorizado, conjugado com a defesa de ideias/ideais filosóficos e religiosos – e com a luta contra outros: a (des)ordem, o niilismo, a humanidade quotidiana… Um policial metafísico, portanto; uma leitura tão séria quanto irresistivelmente atraente.