Religião, política, violência

Karen Armstrong

O destaque de capa de Babelia, o suplemento do jornal El País, de 20/junho/2015, é Karen Armstrong (1944; inglesa de ascendência irlandesa) — e as relações entre religião, política e violência.

Em entrevista (e nas suas obras), a grande estudiosa das crenças  defende o papel de Deus como experiência transcendente. Face ao ativismo ateu (um laicismo que considera agressivo) e os crescentes receios do islão, defende uma visão compreensiva do facto religioso (considerando a religião uma criação humana, como a cultura ou a economia) e, sobretudo, da tendência humana para a busca da espiritualidade; afirma que o secularismo (que “em muitas partes do mundo não foi libertador” e, adverte, nunca poderá ser imposto a partir do exterior ao mundo muçulmano) também pode ser cruel.

A religião é como a arte, o sexo ou a gastronomia: há arte excelente e arte muito má. A ideia de que a religião é daninha não é muito inteligente. […] Como a melhor arte, a religião oferece a possibilidade de escapar ao horror que nos rodeia e procurar sentido para as nossas vidas.

Concretamente… em Fields of Blood (Campos de sangue. A religião e a história da violência) desmonta a ideia de que a intolerância ou o terrorismo estejam implícitos na tradição religiosa. Bem pelo contrário, sustenta que essas crenças favoreceram a solidariedade nas muito cruéis sociedades agrícolas do primeiro milénio antes da nossa era, ainda que tenham servido igualmente de instrumento de poder. No seu imprescindível Islam, tenta combater a ignorância sobre essa cultura.

O referido suplemento publica ainda as críticas a duas das obras de Armstrong: Campos de SangreLa Biblia como organismo vivo.

Campos de Sangre (versão, em castelhano, de Fields of Blood) é “uma obra essencial para compreender os mecanismos que desencadeiam as guerras no mundo”, “uma obra monumental de compilação e ordenação de dados que constitui uma história política das relações entre violência, política e religião, tríptico a que poderíamos acrescentar um quarto elemento: a guerra, desde os seus mais ou menos remotos começos até à atualidade”, “com o objetivo de desentranhar as responsabilidades causais entre esses fatores, tão constitutivos do mundo contemporâneo”.

La Biblia como organismo vivo pretende ser uma biografia da Bíblia, entendida como um organismo vivo, como uma narração que é fruto de um milenar processo evolutivo, um produto da história, em grande medida único e irrepetível. Pretende responder à questão sobre como é que um mero texto, em si mesmo, chegou a converter-se num objeto sagrado, na fé e esperança de milhões de pessoas no seu perfeito juízo, numa religião. E numa fonte ocasional de violência.

O trabalho de Armstrong sobre o processo evolutivo dos livros sagrados é sólido e legível. A interação entre mito e história, permanente. Os teoremas e corolários, discutíveis. Armstrong mostra-nos de forma convincente que o êxodo [relatado na Bíblia] não existiu. Bolas para a freira [ou ex-freira, que é Karen]! Apesar disso, não me atrevo a recomendar
o livro a um ateu. Pelo menos a qualquer ateu. A autora não dá nenhum valor à Bíblia como registo histórico, mas também não a considera um mero artefacto literário, que é o que fazem os que pensam como eu. Armstrong crê — ou dá por facto como simples axioma — que as Sagradas Escrituras vão muito mais para lá da historia, a arte ou a ciência. Crê que sobre esse livro antigo e vivo há algo para explicar, algo que não pode ser captado pela razão, a inteligência ou a criatividade. Algo que, no fundo das nossas almas, os ateus não poderemos entender nem no meio das chamas do inferno.

A completar o mini dossiê, o texto A guerra de Deus nas livrarias faz um percurso por algumas obras fundamentais (para “o campo de batalha entre a fé e o ceticismo” e o julgamento de Deus pelos homens) publicadas desde os tempos de Voltaire (a quem, no leito da morte, pediram que renunciasse ao diabo, tendo o escritor francês respondido que não era aquele o momento adequado para fazer inimigos). Com particular relevância para o século XX.

…um conjunto de quatro páginas que pode ler (em castelhano) aqui.

[imagem copiada daqui]

1 thought on “Religião, política, violência”

  1. Ana Paula Menezes

    Um assunto muito interessante Em que assentamos as nossas crenças … como as valoramos ao ponto de as tornar referentes da nossa existência?

    Por que razão não podem os livros sagrados (independentemente dos marcadores tipológicos que adquiriram) ter sido tão somente o produto dessa magnífica capacidade criativa do Homem?
    Como os entenderíamos, então? A crença seria/ será meramente a projeção do sentir individual? E como perdurou? A humanidade não valorou/ desvalorou e em muitos casos nào contestou pressupostos? E por que razão nunca foram as crenças religiosas basilares derrubadas? O que lhes dá sustentabilidade?

    Será tudo isto um produto da imaginação ( sentir) a que a racionalização de um processo tornado forma ( texto) atribuiu verdade?
    Será, assim, a racionalização do desconhecido que assumimos como verdade?

    E se refutássemos essa verdade? – deixaríamos de crer? Não continuaríamos presos à ideia primeira – a do sentimento?

    Afinal, parece-me mais ou menos claro que as explicaçóes racionais, a este nível, estarão sempre subjugadas a uma outra dimensão – um véu de linguagem lançado sobre uma base irracional, que não permitindo esclarecer, lhe cria as bases de sustentabilidade.

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