[– Sr Presidente Diretor Geral, os empregados acharão mais credível o que tem para lhes dizer, se o disser com uma gravata.
— Dado o que tenho para lhes dizer, talvez o melhor seja usar duas…]
Quase toda a gente emprega o termo retórica dando-lhe conotações negativas. Na Assembleia da República Portuguesa, por exemplo, não há crítica mais demolidora, se não mesmo um insulto, do que dizer de um político que ele tem um discurso retórico. A retórica significa, correntemente, um discurso sem significado, falar para não dizer nada, um discurso muito bonito na forma, mas sem conteúdo de sentido. Assim, tem-se remetido a retórica para a noção de ornamento do discurso, para um sub-domínio da retórica em geral, que é a teoria dos tropos, isto é, das figuras em linguagem, das flores, dos ornamentos: a metáfora, a metonímia, a sinédoque, etc..
O que está subjacente, portanto, é uma ideia da retórica reduzida a uma simples tropologia, a uma simples teoria dos tropos, dos ornamentos em linguagem, quando ela originalmente era e, apesar de tudo, continua a ser — porque houve um certo rejuvenescimento, sobretudo a partir dos anos 50 — mais uma teoria da argumentação, onde a teoria dos tropos tem lugar, mas só enquanto o tropo tem um valor argumentativo.
Efetivamente, a partir dos anos 50 surgiram uma série de obras marcantes (as duas mais importantes foram publicadas em 1958), que retomam um pouco a velha retórica, original, grega no sentido de teoria da argumentação. Na verdade, a retórica começou por ser um estudo e uma prática de todo o discurso que tem uma intenção persuasiva. isto é, pode falar-se de retórica sempre que alguém procura convencer outrem de alguma coisa.
Nem todo o discurso é retórica. Um discurso puramente constatativo, uma descrição de um acontecimento ou, em termos jornalísticos, a reportagem de um acontecimento não é necessariamente retórica (aí, teríamos um discurso puramente constatativo ou denotativo). Também o discurso poético não é necessariamente persuasivo. Quando lemos um Fernando Pessoa ou um Herberto Hélder, não é propriamente essa função persuasiva da linguagem aquela que esperamos. Para se falar de retórica, é preciso uma situação em que haja pelo menos dois interlocutores, uma situação dialógica. E para que haja um discurso persuasivo ou argumentativo é preciso que haja também uma situação em que os interlocutores se reconheçam como passíveis de serem convencidos de alguma coisa. Eu posso ter uma situação social, ou mesmo de relação individual, onde eu não reconheça a alguém o estatuto ou a capacidade de ser persuadido.
Há instituições que funcionam em termos não persuasivos. Por exemplo, as instituições que se baseiam numa hierarquia muito forte, como as Forças Armadas. O comandante quando dá ordens às suas tropas não o faz persuasivamente, não as está a convencer de nada. Dá ordens, e as ordens são para cumprir, independentemente daquele que as recebe estar convencido disso ou não. Portanto, aí não há qualquer persuasão. É a lógica interna dessa instituição hierarquizada que assim o determina, é uma lógica onde a palavra que circula é, não a palavra persuasiva, mas a palavra de comando ou de mandamento no caso de uma instituição religiosa, também muito hierarquizada. Aí, não há lugar para a persuasão, ou seja, para a retórica.
É sempre preciso uma situação de democracia, de reconhecimento da igualdade de situação dos interlocutores e, sobretudo, de reconhecimento do outro como capaz de receber os meus argumentos e ser convencido por eles. Só assim se pode ter um discurso retórico. Só uma situação democrática o permite. Por isso é que não é por acaso que, historicamente, o termo retórica aparece pela primeira vez nos gregos, na democracia ateniense. A lenda diz que os primeiros autores de livros ou tratados de técnica retórica escreveram-nos numa situação em que tinha acabado de ser derrubado um tirano e se tinha instaurado a democracia. Aí, era possível haver argumentação pública para dirimir conflitos ou diferendos entre os cidadãos, renunciando à violência e aceitando consensualmente as regras da melhor argumentação, portanto, da pura racionalidade, e o reconhecimento da cidadania do outro.
Hoje em dia, a retórica, que pura e simplesmente tinha desaparecido da Universidade e do ensino geral, começa a ganhar importância. Praticamente, todos os cursos de Comunicação, em Portugal, tanto no ensino público como privado, têm já no seu curriculum uma cadeira de retórica ou teoria da argumentação. Ensina-se a argumentar, a construir um raciocínio. E a melhor maneira de o conseguir é através da análise de discursos bem argumentados e ver como é que isso funciona na prática.
Assiste-se, por vezes, hoje em dia, a uma sobrevalorização daquilo a que se chama prática e, obviamente, tudo quanto tenha conotações teóricas como seja a filosofia ou a retórica é desvalorizado. O que é duplamente errado, porque se existe um conflito desde a origem e que marcou justamente as duas disciplinas é o conflito entre a retórica e a filosofia. Platão, por exemplo, defendia que a filosofia era a teoria, sendo a retórica uma “simples” prática, uma simples empiria, um fazer baseado no puro desconhecimento.
[texto de Tito Cardoso e Cunha, professor de Retórica na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, in Notícias Magazine de 22 de Junho de 1997]
[Este texto foi publicado como apoio à unidade de Lógica do Programa de filosofia do 11º ano]
O meu baú tem outros textos sobre Retórica.
A imagem que encabeça este texto foi extraída de um sítio que a utiliza como ilustração da retórica. Será correto entendê-la assim?