Sartre, personagem romanesca?

Sartre

Apesar de constar nas histórias da Filosofia, há quem negue a Sartre um valor genuinamente filosófico. É o caso de Ismael Quiles que, em Sartre: el existencialismo del absurdo [2ª ed., Madrid: Espasa-Calpe, 1952] defende expressamente que Sartre não é um filósofo [ver p. 145s]. “É claro que estamos perante uma conceção da vida humana”, admite o autor, acrescentando: “Mas esta conceção pode exprimir-se de muito diversas maneiras: pelo poeta, pelo romancista, pelo dramaturgo, pelo político, pelo militar, pelo sacerdote, pelo artista… […] Ora bem, é fácil apercebermo-nos de que Sartre adotou a atitude e o método do literato mais do que do filósofo” (p. 146),

Poucos dias após a morte de Sartre, na habitual crónica semanal com o nome genérico de Escrever na água e publicada no extinto semanário português o jornal, Augusto Abelaira retoma o tema, num texto a que deu o título de Uma personagem romanesca chamada Sartre (in o jornal de 23/4/1980, onde é publicada a tradução da primeira parte da última entrevista de Sartre, ao Nouvel Observateur):

Sartre, um grande artista ao qual faltou o dom artístico? Esta pergunta não tem muito sentido e no entanto não consigo escapar-lhe. Porque, passada a época em que os seus romances e peças de teatro me entusiasmaram, já não consigo lê-los — mas sem que por isso deixe de considerar Sartre um grande escritor e não apenas por causa da sua obra ensaística. Para ser franco, vejo a sua obra como um todo em que a literatura propriamente dita não pode ser ignorada ou, melhor, é imprescindível. Falando de outra maneira, direi que Sartre, se alguma coisa foi, foi um romancista (com isto recusando a tese contrária de que, mesmo nos romances, ele foi um ensaísta).

Um homem de emoção para quem a lucidez, o poder de convicção dos seus raciocínios, esteve sempre ao serviço duma paixão. E então eu diria que todos os grandes filósofos, um Descartes, um Kant, um Russell, foram decerto homens apaixonados. Mas, num supremo esforço, tentaram distanciar-se dos problemas que discutiam — procuraram descomprometer-se, superar a subjetividade (e não importa agora se com êxito muito limitado). São deuses que procuram conhecer o mundo e é essa aparentemente a posição do filósofo e do cientista. Mas para ser franco, não sinto isso quando leio Sartre. Quero dizer: Kant e Russell, mesmo quando se contradizem, aparecem-me sempre como só podendo dizer o que estão a dizer, mas quanto a Sartre sinto muitas vezes que ele poderia dizer o contrário do que diz e com o mesmo rigor lógico. Os outros são a própria Razão que fala (ou que aparenta falar), mas Sartre racionaliza a paixão do momento. Como uma personagem de Dostoiewski que funciona para o autor como um espelho de mil faces.

Sartre filósofo? Pensador? Decerto, mas um filósofo e um pensador saído da cabeça dum romancista. E aí está: o que há em Sartre de artístico é o facto de ele se ter transformado numa personagem de romance, de ter por trás dele (mas independente dele) um romancista que o inventa, que quis criar uma personagem de filósofo, um pouco à semelhança do Dostoiewski quando criou o Ivan Karamasov. Mas um filósofo saído da cabeça dum romancista nunca poderá ser um filósofo, mas um homem de paixão.

E foi o que aconteceu com o grande romancista desconhecido (chamemos-lhe o romancista X) que inventou a personagem de Sartre. Como o Quixote, como Don Juan, como Hamlet ou Ivan Karamasov, Sartre transformou-se numa das grandes personagens da literatura universal — não um autor. Uma dessas personagens que não pode existir na vida, que só existem nos romances — mas que são mais vivas do que as que existem realmente.

O romancista X que inventou a personagem Sartre chama-se, por coincidência, Sartre. E o romance que ele escreveu foi a sua vida e essa vida, simultaneamente coerente e contraditória, é uma das obras-primas da literatura. Romance em que a personagem principal, um romancista falhado, exprime com admirável intensidade as grandes inquietações da nossa época.

Como acontecera com Ivan Karamasov, que também era um escritor falhado.

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E o leitor… o que pensa sobre o assunto?

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