- Um dos poemas mais citados de António Gedeão (já aqui transcrito) termina assim:
Inútil seguir vizinhos
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
…Variações poéticas de uma ideia que com frequência se repete, nas discussões mais diversas sobre os mais diversos assuntos, e se pode abreviar na fórmula “o que é verdade para ti pode não ser verdade para mim”.
- A ideia de que a verdade é relativa ao ponto de vista do sujeito (a minha verdade / a tua verdade) é a tese central do relativismo. Mas, por mais tentadora que seja a vestimenta com que se vista, tal tese é insustentável.
Em primeiro lugar, um relativismo que se afirme de modo absoluto (isto é, que defenda que todas as verdades – e não apenas algumas – são relativas) é (auto)contraditório: admitindo esse relativismo como verdadeiro, haveria, pelo menos, uma verdade que não seria relativa – precisamente a tese do relativismo, segundo a qual todas as verdades são relativas.
Mas essa tese também não resiste a uma análise que não precisa de ser muito profunda (basta distanciarmo-nos da ilusão que criamos muitas vezes, repetindo ideias que acabamos por tomar como obviamente verdadeiras): é logicamente impossível que duas proposições contraditórias sejam simultaneamente verdadeiras. Se é verdade que, neste momento, estou a escrever, então é forçosamente falso que não estou a escrever. Se a afirmação não está a chover é verdadeira, então a afirmação está a chover é forçosamente falsa. Generalizando, se a afirmação A é verdadeira, então a afirmação não-A não pode ser verdadeira.
- O que torna tão “popular” o relativismo é o facto de, sobre um qualquer assunto, ser difícil haver acordo entre todas as pessoas. Para constatar essa diversidade de opiniões, não precisamos de recorrer a áreas tradicionalmente polémicas, como a política; basta compararmos épocas ou culturas diferentes – e ela saltará à vista… fácil.
Contudo, há aqui uma confusão nem sempre suficientemente esclarecida: a confusão entre o que alguém pensa ser verdade e o que de facto é verdade. Para os medievais (argumenta-se, por vezes, exemplificando, a favor do relativismo) era verdade que o Sol girava em torno da Terra; atualmente, isso é falso. Na verdade, foi sempre falso que o Sol gira em volta da Terra; os medievais acreditavam que era verdade, mas estavam enganados – na verdade, é a Terra que gira em volta do Sol.
- Em algumas áreas, não é fácil saber se uma afirmação é verdadeira ou falsa. Parece-me que, no domínio dos valores, é particularmente difícil: como saber se, globalmente, a obra de Mozart é mais valiosa do que a de Beethoven?
Contudo, mesmo em casos como este, a verdade continua a não depender de quem ouve a música dos dois compositores. Vamos admitir que há quem defenda que Beethoven supera Mozart e quem defenda o contrário; se é verdade que a obra de Mozart é mais valiosa do que a de Beethoven, então qualquer tese que contradiga esta é falsa. Não pode ser simultaneamente verdade que a obra de Mozart é mais valiosa do que a de Beethoven e que a obra de Mozart não é mais valiosa do que a de Beethoven.
- Não adulterássemos o poema de Gedeão, e reescreveríamos os seus últimos versos:
Vê moinhos? Serão moinhos. Ou não.
Vê gigantes? Serão gigantes. Ou não.
Gosto muito deste poema. Gosto muito deste poeta.
Leio os últimos versos desta forma:
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes. (São moinhos e gigantes para quem pensa que é isso que vê e recusa aceitar aquilo que é o ver do “outro”). À verdade vamos chegando com grande esforço e depois de muitas correcções.