SONS # 23 fado e política

Este fado Abandono (onde Amália Rodrigues canta um poema de David Mourão-Ferreira musicado por Alain Oulman), descobri-o no livro Tempo de subversão: páginas vividas da resistência [Lisboa : Nelson de Matos, 2ª ed. revista e ampliada, 2011]. Nele, Carlos Brito, o autor, apresenta o “testemunho pessoalmente vivido” “do quotidiano da luta antifascista, especialmente nas prisões e na clandestinidade”, da resistência à ditadura do regime português, nos vinte anos que antecederam o 25 de Abril de 1974.

 

Tempo de subversão

Preso, pela segunda vez, em 1959, Carlos Brito foi transferido da cadeia de Caxias para a do Forte de Peniche, integrado num grupo que foi preencher as vagas deixadas pela fuga de Álvaro Cunhal e outros nove dirigentes do PCP. Numa secção do capítulo dedicado a Peniche dentro do Forte, as memórias do ex-militante do PCP são relatadas nestes termos (p. 99-100. Negritos meus):

A furna e a cisterna

A furna metia mais medo, mas era menos perigosa. Ouvi-a logo numa das primeiras noites que passei no Forte de Peniche. Acordei alta madrugada com aquele uivo ululante que parecia vir das entranhas da terra e se repetia regularmente. Verifiquei que os meus companheiros de camarata, novatos como eu, estavam no geral acordados, todos tentando perceber o que se passava. Aquele ronco formidável encaixava perfeitamente na sinistra atmosfera com que tínhamos sido recebidos na cadeia e em que estávamos a viver há vários dias. Até que alguém lançou: «Deve ser a furna.» Rimos, então, descontraídos, pois todos tínhamos já ouvido falar dela.

Pouco tempo depois, estando de faxina à limpeza, calhou-me ir vê-la. Era uma longa galeria que o mar escavara na rocha e que tinha uma larga chaminé no meio da parada do Forte. Era esta que libertava o rugido.

Foi, de certa maneira, uma decepção, verificar que a misteriosa garganta que produzia aquele uivo tremendo era usada pelos carcereiros para vazadouro de lixo. Quando lá fui, a primeira vez, estava um pouco apaziguada, mas em dias de maior temporal rejeitava o lixo dignamente, atirando-o pelos ares.

Ao longo dos anos fui estabelecendo uma relação afectiva com o rugido da furna e sei que isso aconteceu com muitos dos meus companheiros que passaram por Peniche. Não havia sono reparador como aquele que o seu rouquejar embalava.

O vento e o mar funcionavam afinal como um grande amparo psicológico dos presos face à pressão a que estavam sujeitos.

O poeta David Mourão-Ferreira, intuindo muito bem esta relação, fez do vento e do mar o refrão do poema que dedicou aos presos de Peniche e que deu letra a um fado da Amália, conhecido antes do 25 de Abril pelo nome de Abandono.

Tanto como a furna, a cisterna foi para os presos que a conheceram um veículo muito importante desta relação com o mar e a paisagem marítima.

Já referi que a água canalizada não chegava às instalações mais altas da prisão, por isso um dos trabalhos a que os presos dessas instalações estavam obrigados era o de tirá-la de uma cisterna para todo o abastecimento que não fosse alimentar. Tratava-se de um trabalho duro, pelo método primitivo da roldana, mas para o qual todos os presos estavam sempre disponíveis, voluntários mesmo se houvesse alguma baixa. É que a boca da cisterna estava situada numa alta esplanada do Forte que dominava a vila com o seu casario, o largo fronteiro à prisão, o porto de pesca, a ribeira, as praias, o mar longínquo e onde os ventos marítimos davam a ilusão de se navegar à proa de um navio. Não eram só os olhos que vogavam naquela imensidão, era o pensamento que partia, evadido enquanto durava a faina…

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