Sufixo -ário, um sufixo fecundo

Um dia destes, inicialmente por divertimento inspirado em programa radiofónico, depois, por teimosia, deu-me para alinhar no papel palavras portuguesas formadas com o sufixo –ário. O episódio do referido programa (Palavra do dia da Antena 1) explicou o significado etimológico de abecedário. Conforme os contextos, o abecedário pode ser

  • o conjunto das letras de um sistema de escrita segundo uma ordem previamente convencionada (atualmente, há imensas brincadeiras, incluindo no Youtube, para que as crianças aprendam o abecedário — ou o alfabeto — da língua portuguesa);
  • um livro para aprender a ler;
  • as noções básicas de uma determinada disciplina, ciência ou arte (como é o caso do livro Abecedário de Teoria Política).

NOTAS:

quando, a seguir, se indicar a origem etimológica, não sendo explicitada outra, entende-se ser origem latina;

o sinal < significa “provém de”; <lat indica a etimologia latina; o sinal > significa “evoluiu para”;

ant. é abreviatura de antepositivo; lat., de latim; port., de português.

A fecundidade do sufixo -ário
[imagem copiada daqui]

A palavra abecedário é composta por a-bê-cê, dos nomes das três primeiras letras do alfabeto, a que foi acrescentado o sufixo -ário, que no caso indica “lista, conjunto”. O abecedário é, portanto, uma lista de letras; quase sinónimo de alfabeto: a palavra alfabeto é formada pelas primeiras letras do alfabeto, agora grego, correspondentes a a e b — o alfa e o beta. A Igreja usava tanto alphabetum como abecedarius.

No seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, José Pedro Machado esclarece que abecedário vem do lat. eclesiástico abecedariu-, um adjetivo que designava “certos hinos litúrgicos da Idade Média, que se compunham de 23 estrofes, cada uma das quais começava por uma das letras do alfabeto”.

A fecundidade do sufixo -ário

O mesmo sufixo, expressando a mesma noção de lista, conjunto, coleção, pode ser encontrado numa infinidade de outros vocábulos (consulte-se, para exemplo, o Dicionário Houaiss), como alfabetário ou…

  • campanário. Não há consenso sobre a etimologia de campanário, antes se defendendo duas versões: a de que deriva do lat. medieval campanarius e a que remete para o lat. tardio campana, traduzida por “sino” ou (em italiano, catalão, espanhol, port.) por “campana” — donde outras palavras da família como campânula (“sino pequeno”) ou campainha (“pequeno sino de mão ou sineta”) ou campanado / campanulado / campaniforme / (“que tem a forma de campânula ou sino”) ou mesmo campanomania (“comportamento maníaco caracterizado pelo gosto obsessivo de tocar sinos ou campanas”). Independentemente da etimologia, o campanário implica a presença de sinos, uma “coleção” de sinos, digamos, uma vez que designa a torre (de uma igreja, palácio ou outro edifício público) onde aqueles são suspensos.

Um artigo do proveitoso Ciberdúvidas também assinala a fecundidade do sufixo -ário, sufixo esse que formava adjetivos, em lat. e em port., antes do Renascimento, mas que devido à sua fecundidade passou também a formar substantivos. Existe em palavras conexas com…

[as séries seguintes nem sempre têm fronteiras nítidas; como é facilmente percetível, há palavras que poderiam estar em mais de uma série]

…coletividades, registos, publicações, livros, fórmulas…

— como anuário, calendário (ver mais abaixo), glossário, horário, lendário, obituário, textuário e…

  • breviário (<lat breviarium: “sumário, resumo, compêndio”): “resumo; livro com os ofícios pelos quais os sacerdotes católicos reza(va)m diariamente; estes ofícios; doutrina (rezam pelo mesmo breviário)”. Deriva do ant. brevi- < lat. brevis: “breve, curto” (por oposição a longus), a partir do qual se compõem abreviar, breve, breviloquência, brevilóquio… É conhecido o preceito latino esto brevis et placebis: “sê breve e agradarás”;
  • dicionário (<lat dictionnarium ou dictionnarius: “repertório”; formado a partir de dictiones: “frases ou palavras”). Originado de diz-, um ant. conexo com o lat. dix e dico, duas formas alternantes da raiz deik-/dik-: “mostrar”. A partir desta, nascem vocábulos latinos como abdico: “recusar-se a reconhecer, a julgar, negar”, de onde o nosso abdicar; dedico (>dedicar, em port.): “consagrar aos deuses, em termos solenes”; praedico (em port., > predicar e pregar)…;
  • sumário (<lat summarium: “sumário, resumo, compêndio”): “resumido, breve, decidido (um assassino sumário)”. Summarium < summa (“suma”), feminino de summus: “o mais alto, o mais elevado, sumo, supremo” e, em sentido figurado, “soma formada pela reunião ou adição das partes, total, conjunto” (por exemplo, a Summa Theologica (Suma Teológica) de São Tomás de Aquino). De summus derivou o ant. sum-, de que se formaram termos portugueses como sumo (“o ponto mais alto, cume”, como em sumo pontífice), sumidade, súmula…, além de sumário. Não confundir sum- < summus
    • com sum- < sumo : “tomar, agarrar”, que origina consumo (com um único m), de onde deriva o nosso consumo/consumir;
    • nem com sum- < grego zomos: “sumo, suco”, que originou o port. sumo (sumo de laranja). Nesta ambiguidade assenta algum humor sobre o Sumo Pontífice ou o nome de alguns bares, sítios/blogues…

… função, profissão, titulares de direito, agentes:

  • boticário (do port. botica, se não do lat. tardio apothecarius: “indivíduo que cuida da apotheca, armazém de víveres”);
  • comerciário: “de ou empregado no comércio” (de commercium, “comércio”, derivada de merx, mercis: “mercadoria”, de que deriva também o verbo mercare, de onde o port. mercar);
  • legionário (de legionarius: “de ou relativo a legião”. Do ant. leg(a)-?, < lat. lex, legis: “lei religiosa ou, mais genericamente, lei”. A partir de lex formam-se também legitimus > (i)legítimo; legalis > legal… e verbos como delegar, legalizar ou relegar (“afastar para longe, desterrar”). Discute-se se collega > colega e collegium > colégio se ligam a lex diretamente ou através do denominativo lego: “delegar em alguém o encargo de fazer algo, em virtude de um pacto ou contrato”;
  • mercenário (<lat mercenarius: “aquele que trabalha ou serve por um preço/soldo, venal”, oposto a gratuitus: “gratuito”). Mercenarius deriva do lat. merces: “preço pago por uma mercadoria”;
    • o ant. merc- <lat merx, mercis: “mercadoria, em sentido próprio e figurado”. Derivados latinos (entre outros): mercatus (> mercado, em port.); mercator (>mercador, em port.); commercium (comércio, em port.)… e Mercúrio, deus do comércio;
  • operário (de operarius, por sua vez, do ant. oper-, do lat. opus, -eris: “trabalho, obra, sobretudo no sentido do produto do trabalho”. A partir do qual se formam, em port., opúsculo (“pequena obra, sobretudo literária”); em lat., opifex (“operário, artesão”) e opificum, contraído em officium > ofício, e officina (“ateliê, fábrica”) > oficina;
  • peticionário (sublinhe-se a conexão com o sufixo -ção de petição, tal como funcionário / função);
  • securitário (do lat. securit(as), “segurança, ausência de perigo”): “relativo a segurança ou a seguros ou companhia de seguros”. Presente, por exemplo, em questões securitárias (“questões de segurança”); índice securitário; investigação securitária; diferenças entre o setor bancário e o setor securitário; ou profissional securitário;
  • vigário (< vicarium: “aquele que toma o lugar de, que substitui, que faz as vezes de, substituto”): “padre que substitui o pároco de uma paróquia”; sentido informal: “aquele que engana outrem com trapaças”. Deriva de vicis: “vez, sucessão, alternativa” (dativo-ablativo: vice: “no lugar de, que substitui a, abaixo de”: vice-diretor, vice-rei… e vice-versa.

… locais de exposição ou de cultivo, depósitos, recipientes e afins

— como ervário, ovário, rosário, santuário, solário e…

  • apiário (< apiarium — por sua vez, de apis, “abelha”): “relativo a ou próprio de abelha” (adjetivo), “local para criação de abelhas” (substantivo);
  • aquário (< aquarius. De aqua, “água”, derivou aquarius, “qualquer reservatório/depósito de água, por exemplo, um bebedouro para o gado”);
  • aviário (< aviariu- — por sua vez, de avis , “ave–): “de aves, capoeira, pombal”;
  • estuário (< aestuariu- < aestus, que originou também esteiro: “trecho de rio ou de mar que entra pela terra dentro: espaço que o mar deixa descoberto na vazante”);
  • prontuário (“de toponímia portuense” por exemplo). De promptuarium: “lugar em que se guardam as coisas que devem estar à mão, despensa, armário”; daqui derivou a aceção “manual de informações úteis”; de promptus: “preparado, disposto, prestes, que está à mão”, particípio passado de promere: “tirar uma coisa de onde ela está guardada, fazer sair, fazer aparecer”;
  • seminário (de seminarium: “viveiro de plantas, em sentido próprio e figurado”; daí, “canteiro onde se semeia…” e “instituição educativa onde se formam eclesiásticos” ou “grupo de estudos em que os os estudantes pesquisam e discutem um tema). Do lat. sero (“plantar”) > lat. semen (“sementes, gérmen”, correspondente no sentido ao grego sperma > port. esperma) > lat. seminarium.

… relação com algo e particularmente relação semântica adjetiva com o substantivo presente no radical da palavra

— como alfandegário, bancário, berçário, diário, secundário, sumário, terciário e…

  • agrário (< agrarium , por sua vez, de ager, agri: “campo” > port. agricultura);
  • armário (< armarium < arma: “armas”. Com o significado original de “arsenal, local para guardar armamentos”, entretanto tomou o significado geral de “cofre, bufete, biblioteca,… armário”);
  • arbitrário (< arbitrarium < arbiter, arbitri: “a testemunha que assiste a uma coisa, árbitro escolhido pelas duas partes”. Este sentido encontra-se em expressões como tribunal arbitral de consumo, “que abrange a mediação, a conciliação e a arbitragem de litígios de consumo”, ou livre arbítrio);
  • balneário (< balnearium < balneum (“banho”)): “de banho”;
  • bestiário (< bestiarium < bestia (“qualquer animal, selvagem ou doméstico, na linguagem familiar”; gramáticos e juristas reservam o termo preferencialmente para animais ferozes terrestes): “relativo a animal feroz” (adjetivo); “gladiador que combatia com animais” (substantivo));
  • bibliotecário (< bibliothecarius, por intermédio do francês bibliothécaire, por sua vez, do grego biblos: “papiro, papel, livro”. Do grego biblion, diminutivo de biblos, “pequeno livro, livrinho”, derivou a palavra portuguesa Bíblia): “aquele que administra uma biblioteca”;
  • binário (< binarius < bis (“duas vezes”): “duplo”): “que tem dois elementos”. Por exemplo, o compasso (musical) binário tem dois tempos — os ternário e quaternário, três e quatro, respetivamente;
  • boticário (do port. botica se não do lat. tardio apothecarius: “o que cuida da apotheca, armazém de víveres”);
  • calcário (< calcarius, “relativo a cal”): “relativo a cal ou que a contém” (adjetivo); “rochas constituídas essencialmente por carbonato de cálcio e de magnésio” (substantivo);
  • calendário. Um calendário (de kalendarius) é uma lista das calendas. Recordo que calendas era o nome dado no calendário romano ao primeiro dia de cada mês (e as calendas gregas, o dia que nunca mais chega, o dia de São Nunca… à tarde!) — e Calendaris, o sobrenome da deusa Juno, venerada em todas as calendas do ano;
  • inventário (do verbo venire: “vir”, derivou invenio: “vir a; achar, encontrar, descobrir”; e de invenio (supino, inventum), inventio > port. invenção e inventor > port. inventor e inventarium > port. inventário);
  • miliário (< milliarium: “um milhar, marco, coluna, pedra miliária que marca uma milha” — ver, por exemplo, a Galeria dos Marcos Miliários do Gerês. Da mesma raiz mil(e), do lat. mille (plural: millia), “mil”, se compõem, entre outros, milheiro, milenário, milénio; do plural latino milla, os portugueses milha, milhão, milhar, milhento, milheiro);
  • numerário (< numerarius: “calculista, calculador, oficial encarregado das contas”, derivado de numerus (“número”). De numerarius > ant. port. numer- > inúmero, inumerável, inúmero, numeração, supernumerário…;
  • perdulário (com base em perder): “aquele que gasta excessivamente, esbanjador”;
  • sanitário: “relativo à saúde pública ou individual” (adjetivo), “sanita” (substantivo). Formado a partir do ant. san- (<lat sannus: “são, que está bem de saúde”), de que derivam insanável, sanar, sanatório, são, malsão, sadio…;
  • trintário: “conjunto de trinta missas, celebradas em dias consecutivos pelo mesmo padre ou no mesmo dia por trinta padres diferentes”. Era/é comum em determinados meios (rurais), “por alma” das pessoas, quando morriam;
  • trintenário: “trintão, que possui entre 30 e 39 anos de idade”.

Para concluir…

  • O sufixo -ário deriva do lat. -arius, -aria, -arium — respetivamente, as formas masculina, feminina e neutra. Do sufixo culto -ária formaram-se palavras como alimária, comissária, cesária e…
    • Candelária: a 2 de fevereiro, celebra-se o dia de Nossa Senhora da Purificação, das Candeias ou da Candelária. “Em obediência às prescrições da lei mosaica (ou seja, de Moisés), Maria apresentou-se no templo 40 dias depois do nascimento de Jesus. O dia em que se celebrava a Purificação de Nossa Senhora passou a chamar-se das Candeias, pois, a partir do século VII, começou a introduzir-se o uso de levar velas acesas na procissão que precedia a missa”. (Ciberdúvidas da Língua Portuguesa). Candelária é formada do lat. candela (“vela de sebo, cera, tocha, candeia”)+ ária. Candela deriva da raiz latina cand- (que deu igualmente origem ao ant. port. cand-, indicativo de “branco”) que ocorre no verbo latino candeo (“ser branco como a neve; estar em chama; queimar”) e sob a forma -cendere (presente em verbos como accendo ou incendo); aqui tiveram origem termos portugueses como acender, incandescente, incêndio, cândido, candura… e candidato (“aquele que veste a toga branca para exercer um cargo público”).
  • Por sua vez, a forma popular -ariu/-aria originou o port. -eiro/-eira, outro sufixo muito produtivo, presente em vocábulos como banqueiro/banqueira, ferreiro, pedreiro ou enfermeiro/enfermeira; bebedeira, dianteira ou traseira… Há até palavras latinas que deram origem a portuguesas diferentes, conforme tenha sido pela via popular ou pela culta; assim, primariu- (“o primeiro, em posição”) originou primário e primeiro, respetivamente, pela via culta e pela popular.
  • Entre os vocábulos terminados em -aria, predominam aqueles a que correspondem nomes agentes em -eiro (carniçaria/carniceiro, carpintaria/carpinteiro, mercearia/merceeiro, vacaria, padaria…); e ainda lugares onde se exerce determinada atividade, indústria ou comércio; com significação dominantemente abstrata ou coletiva (bruxaria, judiaria, mouraria, patifaria, porcaria…). Mas noutros, como pescaria ou pontaria, não temos o sufixo -aria, mas -ia, que se juntou ao infinito dos respetivos verbos (José Pedro Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa).
  • Há palavras, menos abundantes, em que -ário é mera terminação. Por exemplo,
    • Apolinário (< apolinar+-io): além de nome próprio, é adjetivo, sinónimo de apolíneo; indica ainda o jogo realizado na Grécia antiga, em homenagem a Apolo;
    • canário (< canarius, que por sua vez deriva do lat. canis (“cão”): “relativo a cães”). Falamos aqui, não dos pássaros, mas do arquipélago das Canárias, as “ilhas dos cães”, assim denominadas porque uma expedição de Juba II, rei da Numídia (antigo reino existente no território correspondente hoje à Argélia), na principal ilha encontrou uma grande quantidade de cães;
    • dromedário (< dromedarius < (grego) dromas: “o que corre”; aplica-se ao animal e aos soldados montados em camelos “corredores”);
    • erário (< aerarium < aes, aeris: “relativo ao bronze, ao cobre”, cedo especializado no sentido de “moeda, dinheiro” e depois, “tesouro público”)…
  • Derivados de palavras com o sufixo -ário são formados com o sufixo -iado: secretário > secretariado, proletário > proletariado

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