Escrita e memória — contra a escrita

Mais abaixo, em itálico, fica uma transcrição de O Silêncio dos Livros de George Steiner [Lisboa : Gradiva, 2007]. Partindo da crítica da escrita, que Platão faz no Fedro, “resumida num mito egípcio bem conhecido” e que “reflecte sem qualquer dúvida aquilo que o filósofo sentia relativamente aos métodos paradoxais praticados pelo mestre [Sócrates]” (p. 12), Steiner realça dois aspetos contra a escrita — que poderão explicar por que razão nem Sócrates nem Jesus (as duas grandes origens da “nossa sensibilidade ocidental e as nossas mais profundas referências interiores” (p. 9)) escreveram qualquer livro.

O primeiro: “No texto escrito […] está presente um grau máximo de autoridade (vocábulo que, como o étimo latino auctoritas, encerra em si a palavra ‘autor’)” — com o” estatuto do discurso magistral, do canónico” (p. 12).

Escrita e memória (Steiner. "O silêncio dos livros")

Escrita e memória

O segundo: “O recurso à escrita debilita o poder da memória” (p. 15).

Quando a escrita levou a melhor e os livros facilitaram um tanto as coisas, a grande arte mnemónica caiu no esquecimento. A educação moderna cada vez se assemelha mais a uma amnésia institucionalizada. Deixa o espírito da criança vazio do peso das referências vividas. Substitui o saber de cor, que é também um saber do cor(ação), pelo caleidoscópio transitório dos saberes efémeros. Reduz o tempo ao instante e vai instilando em nós, até enquanto sonhamos, uma amálgama de heterogeneidade e de preguiça. Podemos afirmar que tudo o que não aprendemos e não sabemos de cor — adentro dos limites das nossas faculdades sempre imprecisas — é aquilo de que verdadeiramente não gostámos. As palavras de Robert Graves mais não fazem do que dizer que «amar de cor(ação)» ultrapassa em muito qualquer «amor pela arte». Saber de cor é entrar em estreita e activa relação com a essência daquilo que somos. Os livros apõem o selo do bem.

Até que ponto terá sido Jesus de Nazaré um iletrado, em sentido próprio, estrito, continua a ser um enigma” espinhoso e perfeitamente insolúvel. Tal como Sócrates, não escreveu nem publicou fosse o que fosse. A única alusão nos Evangelhos ao acto de escrever pertence ao apóstolo João, que, aquando do episódio da mulher adúltera, conta de forma totalmente enigmática que Jesus traçou algumas palavras na areia. Palavras em que língua? E que significavam o quê? Nunca saberemos, porque Jesus as apagou de imediato. A sabedoria divina, encarnada no homem que Jesus foi, põe em cheque a sapiência formal e textual dos sábios e eruditos do Templo. Jesus ensina por parábolas, cuja extrema concisão e carácter lapidar interpelam sobretudo a memória. Uma ironia trágica determinou que a relação mais próxima que manteve com um texto escrito tenha sido na cruz, sob a forma da inscrição trocista afixada acima da sua cabeça. A não ser isto, o mestre e mago vindo da Galileia é um homem que pertence ao mundo da oralidade, uma encarnação do Verbo (o lógos), cuja doutrina primeira e suas exemplificações são da ordem do existencial, de uma vida e de uma paixão não escritas em texto, mas realizadas em actos e dirigidas, não a leitores, mas a imitadores, a testemunhas (os «mártires») também elas em larga medida iletradas.  O judaísmo da Tora e do Talmude e o islão do Alcorão são como dois ramos de uma mesma raiz «livresca». A exemplaridade da mensagem cristã, encerrada na pessoa do Nazareno, nasce na oralidade e é proclamada através da oralidade.

Contudo, encontramos desde as origens a dissociação e as oposições entre judaísmo e cristianismo, como até no seio do cristianismo. Estão implícitas na dialéctica de «a Letra e o Espírito», questão central de todo o nosso discurso.

Não sabemos quase nada acerca das motivações comunitárias que presidiram à transcrição das narrativas de Jesus sob a forma de Evangelhos. Será que essa transcrição adveio de um tropismo fundamentalmente hebraico em relação ao texto e à aura sagrada, com força de lei, de que o texto se reveste? Advirá ela de uma pulsão irresistível no sentido de acrescentar ou de pôr ponto final aos cânones em vigor nos textos sagrados judaicos através de textos de natureza difusa, local e infinitamente aberta, como terão sido inicialmente os Evangelhos? Não sabemos. E parece-me que não avaliamos como devíamos a incrível originalidade, o carácter absolutamente inédito de que se terá revestido o projecto evangélico (os Evangelhos não se parecem em nada com as vidas contemporâneas ou passadas dos sábios, nem com as biografias de Plutarco ou de Diógenes de Laércio). Na verdade, a genialidade dos Evangelhos sinópticos resulta indubitavelmente da tensão extrema entre uma oralidade substancial e uma escrita performativa. A essência da sua carga provocatória assenta na transmissão quase estenográfica das palavras ditas, por intermédio de uma escrita narrativa ditada pela urgência, à luz das expectativas escatológicas de um apocalipse próximo, imaginamos nós, e do receio, certamente inconsciente, de que não houvesse tempo suficiente para apurar e cultivar a memória oral.

(pp. 16-20)

 

 

 

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