Chagall: vida e obra

Creio que a Marc Chagall acontece o mesmo que a Amadeo Modigliani. Pintores muito conhecidos e estimados pelo grande público que, contudo, são olhados com certa condescendência por espectadores mais cultos, e ostensivamente ignorados pelo cânon da arte moderna. Este é um assunto interessante, porque, para além dos nomes, põe a claro o divórcio entre o gosto comum e a arte do século XX, que conduziu a uma situação bem conhecida: face a muitas obras contemporâneas o espectador não especializado costuma ficar atónito, pois não sabe como apreciar o que vê. E porque é que Chagall e Modigliani não têm na história da arte moderna o papel destacado que lhes corresponderia, se considerarmos o interesse que despertam? Pois… que me perdoem os que escreveram esta história, mas creio que é pela beleza característica da obra destes pintores (e entenda-se beleza como alegria ou claridade). E além da beleza, por serem figurativos. E finalmente pelo peso do autobiográfico nos seus quadros.

Sabemos que para pessoas muito influentes na criação de um conceito de arte moderna, desde o primeiro diretor do MoMA, Alfred J. Barr, até críticos como Clement Greenberg, a obra moderna por excelência era a pintura abstrata, que não representa nada mas que se apresenta a si própria como o que é: pigmento e suporte. Daí que nas versões mais estritas desta história, o surrealismo, por exemplo, não tenha cabimento, por ser um movimento excessivamente “literário” e “pessoal”, figurativo e empenhado na expressão do inconsciente.

A verdade é que, vista em conjunto, na visão dos teóricos  (que não na dos artistas), a arte moderna parece que se propôs um programa anti-humanista. Era assim que pensava Ortega, por volta de 1925, quando publicou A desumanização da arte. O que procuro dizer é que a busca de liberdade e a recusa a servir outra causa que não fosse a própria arte, que são o núcleo da proposta moderna, levaram de forma inevitável a afastar a arte do interesse comum, do gosto da maioria. É bem verdade que as maiorias não têm que ser juízes do artístico e, sobretudo, que esse impulso libertador tinha surgido como oposição a uma arte asfixiada pelos truques do ofício, o sentimentalismo exagerado e o academicismo. Mas o movimento pendular da história acabou por a transportar para o extremo oposto.

Por outro lado, Chagall em Espanha é pouco e mal conhecido. Até à criação do Museu Thyssen não contávamos com nenhum quadro significativo em coleções públicas. Como Modigliani, foi sempre um autor favorito dos posters, mas isso precisamente não contribui para reforçar o seu valor. Por isso, como também aconteceu no caso de Modigliani, é muito de agradecer a iniciativa do Museu Thyssen de oferecer uma completa amostra da sua trajetória [exposta entre 14 de fevereiro e 20 de maio de 2012]. A partir daí, cada qual pode tirar as suas conclusões.

A biografia de Chagall, que nasceu em Vitebsk em 1887 e morreu em Saint-Paul de Vence em 1985, foi marcada pelo desarraigamento da sua geografia e da sua cultura. E estas circunstâncias são, sem dúvida, decisivas na orientação da sua arte. A cidade bielorrussa onde viu a luz fazia parte do território onde os judeus orientais tinham sido autorizados a residir.

A sinagoga, as casas de madeira, a pobreza digna foram o cenário dos seus primeiros anos. Em 1906 obteve a autorização necessária como judeu para viajar até São Petersburgo, nessa altura o centro da vida cultural russa. Já nos quadros de 1910, como O casamento russo ou Mulher com ramo de flores vamos encontrar elementos tão constitutivos da sua personalidade como são, por um lado, as referências locais e por outro o protagonismo da cor. No entanto, o artista está consciente de que São Petersburgo não podia oferecer-lhe mais do que a formação académica que já tinha cursado. Assim pois, em 1911, subiu resignadamente a um comboio que em quatro dias o conduziu a Paris.

Como conta em A minha vida, redigida com apenas trinta anos: “Só a distância que separa Paris da minha cidade natal me impedia de regressar de imediato”. O jovem pintor judeu, procedente de uma longínqua província russa, encontrou-se completamente perdido na capital da vanguarda. Se em São Petersburgo, como conta, lia os menus e os preços dos restaurantes como se fossem poemas, em Paris comprava um arenque que tinha que lhe durar para vários dias. Apesar disso, pôde conhecer diretamente a obra dos impressionistas, ver quadros de Gauguin, Van Gogh e Matisse e, sobretudo, submergir-se na história da pintura entesourada no Louvre. As suas telas acusaram pontualmente todas estas influências junto com a do cubismo.

Chagall entrou em contacto com o cubismo através de Robert Delaunay, casado nessa altura  com uma bailarina russa. Tanto o cubismo de Delaunay como o de Chagall têm em comum o interesse pelo tema do quadro. A ortodoxia de Picasso, Gris ou Braque subordina completamente os objetos e os sujeitos à composição, ao ponto de os tornar muitas vezes irreconhecíveis. Não é esse o caso de Chagall, que num quadro como Eu e a aldeia (1911) utiliza o método cubista de esquartejamento de planos, mas para construir assim cenas simultâneas e com escalas diferentes, cuja ordem de leitura não está pautada. Mais convencionalmente cubista é também um quadro notável: O poeta (1911), dedicado ao seu amigo, o estentóreo Blaise Cendrars. Sabemos que Chagall manteve relações mais estreitas com os poetas do que com os pintores, e foram poetas os que primeiro admiraram os seus quadros. Guillaume Apollinaire, o extraordinário adivinhador de novidades, ele próprio comprometido com a imagem nos seus poemas visuais, visitou o estúdio de Chagall e qualificou a sua obra de “sur naturel” (sobre natural). Referia-se assim essa peculiaridade das composições, em que se encontram o real, o recordado, o sonhado e o imaginado. Pouco depois Apollinaire aperfeiçoaria o termo convertendo-o em “sur real”. A tradução literal é “sobre real”, mas o uso consagrou outra mais eufónica: surreal, e daí surrealismo.

Novas linguagens

 

Os quadros de Chagall em Paris, nos começos da década de 1910, são uma repetida evocação das suas origens. Embora  se comprometesse cada vez mais com as novas linguagens artísticas, a sua imaginação, contudo, continuava virada para o passado. Finalmente, em 1914, após o êxito de uma exposição em Berlim, encontrou a ocasião para regressas à sua pátria, entre outras coisas para casar-se com Bella Rosenfeld, a sua noiva. O Aniversário (1915), um dos quadros mais conhecidos de Chagall, no qual dois apaixonados flutuam unidos por um beijo, testemunha o caráter dos seus sentimentos. O rebentar da Primeira Guerra Mundial transformou o que tinha sido planeado como uma breve estadia na Rússia em oito longos anos.

E nesse período tem lugar o acontecimento que o pintor qualificou como o mais importante da sua vida. Ser testemunha presencial da revolução soviética, que derrubaria o regime czarista. Arrastado pela euforia coletiva, Chagall declara-se fervoroso comunista. Um velho conhecido da imigração parisiense, Anatoli Lunatcharski, é nomeado diretor do Ministério da Cultura e isso vale a Chagall ser promovido a comissário de Belas Artes em Vitebsk. Por motivo do primeiro aniversário da revolução, a cidade será decorada segundo um plano que tinha traçado cuidadosamente. Apesar de Chagall ser fiel à ideologia do estado, e algumas obras refletem-na com precisão, é ainda mais fiel à sua própria linguagem. E nem as vacas verdes nem os cavalos voadores são do agrado dos seus camaradas. Como face às vanguardas parisienses, aceita o que lhe interessa sem se comprometer com o todo. O mesmo sucede ante a pujança do construtivismo e do suprematismo, que propugnavam El Lissitzky e Malévich. De facto, Chagall será finalmente destituído dos seus cargos, que Malévich ocupará, e realojado em Moscovo, onde é encarregado dos trabalhos cénicos de um pequeno teatro, em troca da mera sobrevivência.

Na sua pintura estes acontecimentos deixaram marcas inequívocas. Do suprematismo aceitará os grandes campos de cor de A vida rural (1917). O período moscovita gerou uma das suas obras primas: os murais do Teatro de Câmara Judaico. Dedicados às diferentes artes, junto a elas aparecem alguns dos seus mais queridos motivos: violinistas, acrobatas, animais de quinta… De novo extremamente pobre, sem encomendas nem perspetivas, em 1923 decide regressar a Paris com a esposa e a filha.

Tem lugar, nessa altura, uma circunstância certamente estranha. Mal consegue sustentar-se como artista, mesmo sendo o pintor russo mais conhecido e a sua linguagem artística tenha cristalizado. A sua carreira artística não pôde desenvolver-se, mas depressa o conseguirá. Em 1924 teve lugar em Paris a sua primeira retrospetiva. Dois anos depois exporá em Nova Iorque. Nas décadas seguintes chegaria a ser um pintor com êxito. Algumas das suas obras primas datam dessa altura. A Crucifixão branca (1933) ou A Contestação (1943) têm o alento dos antigos profetas. Também realizará então os seus primeiros ciclos de temas bíblicos. Há que destacar como Chagall foi misturando a iconografia cristã com os mitos do judaísmo, para criar a partir de ambos novos significados. É também por essa altura que é descoberto pelos surrealistas, que encontram nele um genuíno precursor. Breton escreveu: “Só graças a ele pôde a metáfora voltar triunfante à pintura moderna”. Mas depressa a guerra transtornará outra vez a sua vida: o acordo do governo de Vichy com Hitler põe os judeus numa situação perigosa. Em 1941 decide mudar-se para os Estados Unidos, onde residirá até 1948. Casado de novo em 1952 com Valentina Brodsky, após enviuvar de Bella, oito anos antes. Chagall instala-se numa localidade da Costa Azul. Continuará a pintar incansavelmente e também fará tapetes e cerâmicas. É o tempo das grandes encomendas: o teto da Ópera de Paris, os vitrais na Catedral de Metz, na Universidade de Jerusalém, nas Nações Unidas,… Desses anos datam, contudo, quadros mais rotineiros e previsíveis.

Singular e marginal

Gostaria de terminar estes comentários com duas reflexões. A primeira, em torno da metáfora. Escreve Jean Michel Foray: “Chagall é o pintor da alegoria — essa metáfora prolongada — que a arte moderna, desde Manet, não tinha feito outra coisa senão reprimir”. Efetivamente, é esta posição dissidente de uma das linhas mestras do desenvolvimento da linguagem pictórica o que granjeará a Chagall uma posição tão singular como marginal. Esse “excesso de sentido” dos seus quadros, o seu caráter narrativo, converte-o em anti-moderno. A outra reflexão é de índole mais geral: se olharmos em conjunto a história da arte moderna, damo-nos conta de que alguns dos artistas mais interessantes, desde Paul Klee a Balthus, desde o douanier Rousseau até Joseph Cornell, são incongruentes com a versão convencional da arte moderna. Não fazem parte de qualquer “ismo”, não criam escola nem encontram pares. Quer dizer, não encaixam em nenhuma construção teórica que ordena essa história como um processo numa direção. Talvez essas singularidades formem um avesso da trama, uma constelação distinta que só com a perspetiva atual somos capazes de distinguir. Um mapa em que os autores mencionados e tantos outros ocupariam um lugar destacado. Mas essa é uma história da arte moderna que ainda está por escrever.

[Chagall nasceu a 7 de Julho de 1887. Celebramos o seu aniversário com a publicação deste texto, traduzido do número 156 da revista Descubrir el arte]

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