GUERRA

Os fuzilamentos de três de Maio, de Francisco de Goya
Os fuzilamentos de três de Maio, de Francisco de Goya

“O vocábulo guerra deriva do germânico werra — grito de combate —, que dá, no baixo latim, guerra, no francês, guerre, no alemão, wehr, no inglês, war, no espanhol, no português e no italiano, guerra. O fenómeno G. dá-se praticamente em todas as sociedades, desde as mais arcaicas às mais modernas, em todas as civilizações e em todas as épocas. Tal constância e universalidade tornam a sua percepção fácil e intuitiva. Quando se trata, porém, de o definir com rigor, começam as dificuldades. Acontece-lhe algo de semelhante àquilo que Santo Agostinho diz a respeito do tempo: «Se não me perguntam, sei o que é; se me perguntam, deixo de o saber.» Daí a grande variedade de definições dependente da perspectiva em que se coloca o analista, da amplitude do fenómeno e da escolha de determinado factor explicativo.

Esse factor pode ser: 1) ou a «lei divina» imanente: assim, v. g., a concepção helénica simbolizada no deus Ares, a concepção germânica hipostasiada no deus Votan, a teoria de Heraclito de Éfeso, que declara «o combate pai de todas as coisas e de todas as coisas rei» (D-K, B 53), a teoria de Hobbes do bellum omnium contra omnes, como «estado de natureza», a teoria de Hegel, que afirma ser «a guerra o momento em que a idealidade do ser particular recebe aquilo que lhe é devido e se torna realidade», a teoria daqueles que, na linha de Heraclito e Hegel, vêem na G. «o motor da História»; 2) ou a «lei divina» transcendente: assim, v. g., em certas passagens da Bíblia, em que a G. aparece ou como castigo do pecado ou como modo de obedecer ao preceito de Javé, e na «guerra santa» do Alcorão; 3) ou como «lei moral», na dialéctica do crime e do castigo; 4) ou como «lei biológica», quer esta se entenda como necessidade de destruir os «excessos demográficos», necessidade que aparece como «função social recorrente» periódica (G. Bouthoul), quer ela seja tomada como a força, por excelência, da expansão da humanidade na luta pelo melhor; 5) ou como «lei psicológica», na realização de certos instintos fundamentais do homem — a agressividade, a «vontade de domínio», a ambição, o apetite de coesão, na eminência do contrário, sobretudo, o desejo da «festa» e da exaltação colectiva — e na libertação de ódios, de medos» de ressentimentos e de complexos de culpa recalcados; 6) ou como «lei económica»: quer para quebrar o círculo da miséria, quer para expandir a abundância (liberalismo), quer para obviar, pelo imperialismo, à queda do capitalismo (Marx e Lenine), quer para, graças à revolução, operar a libertação dos povos oprimidos (Lenine e Mao Tsé-Tung); 7) ou como «lei ideológica» da própria difusão; 8) ou como vontade política que, na impossibilidade de se impor de outro modo, se afirma pela violência. É desta última causa que se arrancam as famosas definições de von Clausewitz, repetidas, c. um século mais tarde, por Lenine e Mao Tsé-Tung: «A guerra é uma simples continuação da política por outros meios» (De la guerre, trad. fr., Paris, 1955, p. 67) e: «A guerra é um acto de violência destinado a obrigar o adversário a fazer a nossa própria vontade» (ibid., p. 51).

Analisar as causas da G. torna-se de necessidade imprescritível porque só a partir daí é que pode nascer alguma probabilidade de a suprimir ou de notavelmente lhe diminuir a frequência e os efeitos funestos. «As guerras — diz o texto instituidor da Unesco —, originando-se no espírito dos homens, é no espírito dos homens que devem ser erguidas as defesas da paz…». Ou, mudando um velho adágio latino: “Si vis pacem, nosce bellum.» Hoje, porém, no estado do conhecimento a que chegámos, apesar do muitíssimo que acerca da G. se escreve, não é possível ainda dar ao fenómeno uma definição capaz. O mais que é permitido dizer é que se trata de uma função social expressiva da violência armada entre grupos humanos organizados, função com múltiplas variáveis, que vão desde a teologia à economia, passando pela psicologia, a política e a ideologia. Perante tal facto, a pergunta fundamental é a seguinte: será tal função substituível ou, pelo contrário, estará a humanidade condenada a suportá-la como parte integrante do seu próprio ser? A resposta não pode ser nem utópica nem fatalista. Como outros flagelos de que a humanidade se libertou, embora em certas épocas eles parecessem inerentes à sua condição, também, em princípio, ela se poderá libertar da G. A função social, que a G. é, pode ser substituída por uma adequada educação dos instintos que a provocam, pela criação de organismos internacionais eficazes que à violência façam suceder a arbitragem, pela supressão das outras causas, sociais e económicas, que estão na sua origem. Mas do poder ser ao ser a distância é grande”.

Bibliografia:
R. Aron, Les Guerres en chaîne, Paris, 1951; id., Espoir et peur du siècle, ibid., 1957; id., La société industrielle et Ia Guerre, ibid., 1959;
id., Paix et Guerre entre les nations, ibid., 1962; G. Bouthoul, Les Guerres, Paris, 1951; AA. VV., Guerre et paix (40e semaine sociale de France), 1953; id., De la nature des conflits, 1957; K. von Clausewitz, De la Guerre (trad. fr.), Paris, 1955; R. Bose, La société internationale et l’Église, 2 vols.. Paris, 1961 e 1968; R. Coste, Morale Internationale, Paris, 1964.

(M. Antunes in Logos : enciclopédia luso-brasileira de filosofia. Lisboa: Verbo, 1989-1992. 5 volumes)

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  • Texto de apoio ao tratamento de um (possível) tema/problema da unidade do programa de Filosofia do 10º ano Temas/Problemas do mundo contemporâneo.
  • Leia ainda, n’O meu baú, o texto Fundamentação da guerra: o que justifica as guerras? Há guerras justas? se sim, o que as justifica?

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