Hipácia (do filme "Ágora")

Hipácia de Alexandria, vítima da intolerância cristã

Num dia de março do ano de 415 depois de Cristo, na cidade de Alexandria, morreu uma das mulheres mais inteligentes e inconformistas da sua época (e, ao que se diz, particularmente bela); num tempo em que as oportunidades para as mulheres eram quase nulas, Hipácia (ou Hipática) foi uma muito conceituada professora, conferencista, a primeira mulher matemática de que se tem conhecimento seguro e detalhado, astrónoma, física… e filósofa, responsável por uma escola de filosofia neoplatónica. Esteve envolvida em descobertas e inovações.

Hipácia (do filme "Ágora")[imagem copiada daqui]

Na verdade, Hipácia, admirada pela sua dignidade e virtude, foi despedaçada por uma multidão cristã. A sua morte é um dos factos mais cruéis do início do cristianismo. A caminho do trabalho, foi atacada por uma turba de cristãos enfurecidos; arrastaram-na pelas ruas da cidade até uma igreja, arrancaram-lhe as roupas e, com telhas dos telhados e conchas, esfolaram-lhe a pele e a carne; os seus restos foram queimados, os seus trabalhos destruídos.

Hipácia, entre cristãos e pagãos

O brutal assassinato de Hipácia é mais um episódio da luta entre cristianismo e paganismo. Desde o início, os cristãos haviam sido perseguidos. Pelos judeus, que consideravam a nova religião uma heresia. Pelos romanos, mas por razões diferentes: Roma sempre tolerou todas as crenças e rituais, desde que respeitassem os deuses do império e a divindade do imperador; ora os cristãos apresentavam-se como possuidores da verdade absoluta, o que levava as outras crenças religiosas a considerá-los fanáticos – ou mesmo satânicos (dado o caráter secreto de muitos dos seus ritos), circulando rumores de canibalismo (baseados nas referências a comer o corpo e beber o sangue de Cristo).

As perseguições acentuaram-se quando Roma decidiu, no século III, instituir uma “religião estatal”, objetivo a que os cristãos eram forte impedimento. Contudo, a perseguição mostrou que, quanto mais se lutava contra eles, mais a sua religião prosperava. E então aconteceu que esta seita judaica se apoderou do poderoso Império Romano, com a pretensão de estabelecer um domínio não apenas religioso, mas também político e filosófico.

A grande viragem aconteceu com o imperador romano Constantino. Colocou-se decididamente ao lado da Igreja; pelo édito de Milão (313), permitiu a liberdade dos cultos, decisão que de facto era muito favorável aos cristãos. Diz-se que terá recebido o batismo no seu leito de morte; trate-se ou não de rumores propagados pelos cristãos (portanto, uma das muitas fake news), o certo é que o imperador tentou pôr fim ao paganismo romano e convocou em 325 o primeiro concílio ecuménico da história, em Niceia, contra a heresia trinitária ariana.

De vítimas a verdugos

E a viragem foi tal que as vítimas do passado tornaram-se os verdugos do futuro. A partir de Constantino, passando por Justiniano e apenas com um brevíssimo interregno de Juliano (a que os cristãos significativamente chamaram de Apóstata), a legislação tornou-se cada vez mais repressiva contra o paganismo e a filosofia. Sob o reinado do imperador Teodósio I (de 379 a 395), o cristianismo foi declarado religião oficial do Império, abolindo-se todas as práticas politeístas; foi convocado novo concílio (em 381); os templos pagãos foram fechados ou destruídos, como aconteceu ao de Serápis. Desenvolveu-se contra o paganismo um surto de violência e uma “guerra cultural” que chegou aos Jogos Olímpicos, cancelados por serem pagãos.

Alexandria, a cosmopolita cidade egípcia que fora centro de uma atividade comercial intelectual intensa desde o início da era cristã, onde os mais diversos povos trocavam mercadorias e ideias, onde pagãos, judeus e cristãos partilhavam o mesmo espaço – Alexandria era, no tempo de Hipácia, uma cidade em que se vivia sob a grande pressão da disputa entre cristãos e pagãos. O governador imperial, Orestes, era um cristão tolerante com outros grupos religiosos. Mas não Cirilo, nomeado Patriarca de Alexandria em 412; combatente fervoroso contra as heresias, aumentou o nível da perseguição contra tudo o que não fosse cristão, judeus incluídos. Os surtos de violência popular entre cristãos e pagãos tornaram-se cada vez mais frequentes: neste período, dois bispos cristãos tiveram morte semelhante à que deu o mote a este texto.

A destruição de um mundo

É neste ambiente que acontece o assassinato da nossa ilustre mulher. Hipácia tinha mantido a neutralidade, tratando com igualdade cristãos e não cristãos (considerando que a filosofia, a ciência e as matemáticas estão acima das disputas político-religiosas); mas, face à crescente violência cristã, toma partido pela firmeza estatal de Orestes, fundamentada na tradicional ideia greco-aristotélica de que é a autoridade religiosa que deve subordinar-se à política, ao governo secular, e não o contrário. E foram crescendo os rumores cristãos de que era ela quem enfeitiçava Orestes.

Uma outra grande glória da cidade egípcia é a mais célebre biblioteca da antiguidade, a famosa Biblioteca de Alexandria. Estimando-se ter abrigado setecentos mil volumes, tendo sido um dos maiores centros de produção de conhecimento, foi incendiada duas vezes: a primeira, aquando da revolta da cidade contra César (48-47 a.C.); a segunda, pouco tempo depois da morte de Hipácia, pelos cristãos que a consideravam um covil do paganismo.

Símbolo da sabedoria e da ciência, que a Igreja nascente identificava com o paganismo, Hipácia, que entre os cristãos fanáticos era conhecida como “a Pagã”, foi brutalmente assassinada, se não às ordens de Cirilo, muito provavelmente às mãos de uma fação cristã seguidora de Cirilo que a acusava de conspirar contra o Arcebispo junto do governador. A Biblioteca de Alexandria foi queimada. Diminuiu rapidamente o número de filósofos na cidade e a qualidade do que aí era ensinado. Cirilo foi santificado pela Igreja: é São Cirilo de Alexandria.

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||| O texto Hipácia de Alexandria… 

… é o sexto da série Histórias exemplares. O quinto (O barco de Teseu e o problema da identidade pessoal) está aqui….

Para explorar o tema…

||| Ágora é um filme centrado na figura de Hipácia, sobre a cidade de Alexandria, sobre o Cristianismo e as suas injustiças.

||| Catherine Nixey. A chegada das trevas : como os cristãos destruíram o mundo clássico. Porto Salvo: Desassossego, 2018, capítulo nove

||| Carl Sagan. Cosmos. Lisboa : Gradiva, 2009, pp. 335-336

||| Dossiê Tolerância

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