O barco de Teseu

O barco de Teseu e o problema da identidade pessoal

Na última história, recordei Teseu, o filho do rei ateniense Egeu, que matou o Minotauro cretense e assim libertou a sua cidade do castigo que a atormentava. Com várias peripécias pelo meio, o nosso herói fez por mar as viagens de ida e volta entre Atenas e Creta (fica aqui registado que, para além desta, decidiu-se por outras expedições e aventuras, como uma contra as amazonas) – e o barco de Teseu tornou-se tão importante que serviu de inspiração a histórias, das quais se destaca uma que contarei a seguir, um tanto ao meu jeito.

O barco de Teseu
[imagem copiada daqui]
O barco era feito de pranchas de madeira; algumas delas foram substituídas durante a viagem de ida. Apesar das novas pranchas, o barco continuou a ser o mesmo (é óbvio – não lhe parece? Lá por ter algumas pranchas novas, deixou de ser o barco de Teseu?!).

Pior foi a viagem de regresso (agora, recordo, com Ariadne a bordo). O navio fez escala em Naxos, capital da ilha grega do mesmo nome, onde a pobre Ariadne acabaria por ficar, mais ou menos abandonada. Um vento muito forte deixou o navio à deriva, danificou algumas pranchas, que Teseu mandou substituir.

A escala seguinte foi na pequena ilha de Delos, onde Teseu consagrou uma estátua de Afrodite e aproveitou para mandar substituir as pranchas originais que ainda restavam. O navio de Teseu ficou novinho em folha.

Onde está o barco de Teseu?

Quando o herói chegou a Atenas, os habitantes da cidade quiseram celebrar a vitória, pelo que se reuniram no local onde se encontrava o venerado barco de Teseu. Ou será que aquele já não era o barco de Teseu? Dado que todas as peças foram substituídas, o navio que chegou a Atenas é o mesmo que saiu, uns tempos antes?

Se o leitor entende que já não é, diga isso aos atenienses: acha que eles acreditarão? Por amor de Apolo! se a tripulação foi sempre a mesma, se foi ali que se fez toda a viagem… Ou diga-o ao próprio Teseu – e ele garantirá que o navio em que partiu foi o mesmo em que chegou; renovado, é claro, mas o mesmo.

Mas, se o leitor entende que é outro barco, peço-lhe que me explique quando é que ele deixou de ser o barco de Teseu. Após a substituição de quantas pranchas? Ou, se preferir: qual foi a prancha cuja substituição destruiu o barco de Teseu? Se, em vez de nenhuma, tivesse ficado pelo menos uma prancha original, já seria o barco de Teseu?

Nesta história, há um elemento castiço da tripulação; chamemos-lhe Velhariakos, em razão da sua persistente mania de guardar velharias. Velhariakos foi recolhendo todas as pranchas velhas do navio e, após o regresso, com elas foi reconstruindo o barco primitivo. No final, ficou com um novo barco, que expôs em praça pública para recordar a afamada viagem. Suponha o leitor que vai visitar Atenas e pergunta a um habitante onde está o barco de Teseu: qual dos dois lhe será indicado como autêntico? Aquele em que o filho de Egeu regressou vitorioso – ou aquele que Velhariakos reconstruiu? Diz-me que é o primeiro? mas esse foi totalmente modificado. Opta pelo segundo? mas como pode ser o barco de Teseu, se Teseu nem sequer poisou alguma vez lá os pés?

O barco de Teseu e a filosofia

Se teve paciência para prolongar a leitura até aqui, aposto que já adivinhou que isto é mais do que uma história para ver navios. O problema do barco de Teseu é um problema com nós próprios. À semelhança do navio, olho para fotos de mim há uns anos e percebo que aquele das fotos sou eu; mas, simultaneamente, vejo que hoje sou totalmente outro. Dito de um modo mais pomposo: o problema está em saber o que é necessário para que uma coisa (que se modifica) possa ser considerada a mesma coisa (ou alguém seja a mesma pessoa) ao longo do tempo: a quê nos referimos, quando dizemos “eu”?

É que isto é inegável: crescem-nos e cortamos o cabelo e as unhas; eventualmente, perdemos um braço ou uma perna ou até (felizmente com menos frequência) trocam-nos o fígado ou o coração; os ossos enfraquecem; perdemos parte das memórias e da capacidade de memorizar; as células renovam-se muitas vezes durante a vida, em intervalos regulares, como as pranchas do barco de Teseu, ou alteram-se ou degeneram. E, apesar de todas estas mudanças físicas ou psicológicas (algumas das quais são visíveis nas fotos de nós com diversas idades), dizemos que continuamos a ser nós: porque é que podemos dizer coisa tão estranha?

Há quem responda que as pessoas são o seu cérebro. E poderemos até achar que esta teoria tem apoio na constatação de que o cérebro é uma parte de nós diferente daquelas que hoje já são substituídas com maior ou menor facilidade (fígado, coração…). Contudo, o avanço da ciência aponta para a possibilidade de o cérebro vir a ser substituído – e os pensamentos, lembranças, ideias…

O príncipe e o sapateiro

No século XVII, John Locke previu a possibilidade dessa substituição, ao formular outra versão do problema do barco de Teseu (já aqui apresentada, numa breve recensão ao livro Não Descartes Estas Ideias). Aquele filósofo inglês convida-nos a imaginar que, certa noite, a alma (digamos, o cérebro) de um príncipe, com todos os seus pensamentos principescos, é transferida para o corpo de um sapateiro: quem é que acorda no pijama do sapateiro, no dia seguinte? A pessoa que está no corpo do sapateiro lembra-se de ter sido príncipe, reconhece-se como príncipe e não como sapateiro; os outros continuam a identificá-lo como sapateiro.

Na mesma noite, a alma do sapateiro é transferida para o corpo do príncipe. Acontece que, uns dias antes, o príncipe tinha cometido um crime, que não vamos aqui revelar; quando os guardas vierem prender o criminoso, qual dos dois devem levar: o que tem alma de príncipe ou o que tem corpo de príncipe?

***

||| O texto O barco de Teseu… 

… é o quinto da série Histórias exemplares. O quarto (O fio de Ariadne) está aqui….

||| O problema que os filósofos formulam aproveitando o barco de Teseu é identificado como o problema da identidade pessoal. Com outros (como o problema mente-corpo, já aqui abordado), é estudado na área da filosofia conhecida por Filosofia da Mente. Mas não só: assumindo outras formas, cabe em outras disciplinas filosóficas, como a ética (note que o último parágrafo do texto anterior aponta um problema ético: o da responsabilidade moral. Se quiséssemos explorar até ao limite o problema da identidade, poderíamos perguntar se o réu que é acusado de um crime que presumivelmente cometeu há uns anos é a mesma pessoa que está agora a ser julgada e se, portanto, deve ser condenada).

||| Há outras variações sobre a experiência mental do barco de Teseu (além das três formuladas no texto, que incluem a de Locke: o príncipe e o sapateiro). Por exemplo, o homem do pântano; o teletransportador; ou o chinês que sonhou ser uma borboleta.

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