Não Descartes Estas Ideias

Não Descartes Estas Ideias: a bizarria filosófica para totós

Está muito enraizada a imagem dos filósofos como seres com uma ganda panca – gente maluca, para sermos curtos e grossos. É essa também a imagem que colhemos de uma primeira abordagem ao livro de Gary Hayden, mestre em Filosofia apresentado na badana da obra como jornalista e filósofo popular, Não Descartes Estas Ideias (tradução muito feliz do original You Kant make it up!). O subtítulo reforça a ideia de que no livro encontraremos Estranhas teorias dos grandes filósofos.

Não Descartes Estas IdeiasNão Descartes Estas Ideias: Estranhas teorias dos grandes filósofos
de Gary Hayden
Tradução de João Quina
Alfragide : Texto Editores, 2012, 223 pp.
[Encontra aqui, em pdf, as primeiras 18 páginas, que incluem o índice e parte do 1º capítulo]

Fazendo coro, a introdução abre sublinhando que

“[o]s filósofos são pessoas inteligentes. Alguns são mesmo muito inteligentes. No entanto, são capazes de dizer coisas profundamente bizarras”, em ideias que, previne o autor, nos podem surpreender, divertir, ofender e confundir.

E enuncia algumas das que aparecerão nos capítulos seguintes: que, segundo John Locke, as laranjas não são cor de laranja; ou que a masturbação é pior do que a violação, teoria defendida por um filósofo santo: São Tomás de Aquino; ou que tudo são números, se Pitágoras tem razão; ou que a matéria não existe (mas os unicórnios, sim)…

Volta e meia, a bizarria de algum filósofo vai ao extremo de considerar que grande parte da filosofia é fanfarronice, parvoíce (ver o capítulo 35, sobre a teoria do conhecimento de Hume). E, lá para o meio do livro, ficamos a saber que a inspiração de Hayden foi colhida em uma das obras de filosofia mais bizarras, “tão incrível e alucinadamente bizarra” que Russell a classificou como “uma espécie de conto de fadas fantástico”: a Monadologia de Leibniz.

Não Descartes Estas Bizarrias…

O que fazer, então, com tanta bizarria? Dado que “as ideias bizarras não são necessariamente erradas”, Hayden desenvolve cada capítulo em torno de uma ideia bizarra, que explica e defende utilizando os argumentos de um filósofo famoso, cujo pensamento é frequentemente contextualizado através de breves elementos biográficos

(por exemplo, a influência da depressão de Stuart Mill na sua crítica à conceção do prazer do hedonista Bentham)

e de eventuais relações com outros filósofos

(por exemplo, o capítulo 13 traça sucintamente o percurso de uma opinião de Santo Agostinho até ao século XXI).

E assim desfilam diante de nós (digamos, despidas) teorias e argumentos, conhecidos ou nem tanto, como a Teoria das Formas de Platão; ou o falsificacionismo de Popper ou o problema da indução tal como é discutido por Hume; ou a teoria moral de Kant ou a teoria moral do taoismo; ou o argumento ontológico de Santo Anselmo; ou a tese do melhor mundo possível de Leibniz ou a do pior de todos os mundos de Schopenhauer; ou o egoísmo psicológico de Hobbes ou os argumentos de Ayn Rand contra o altruísmo; ou o idealismo anti materialista de Berkeley; ou a sorte moral de Thomas Nagel; ou as opiniões tolas de Schopenhauer

(tem a companhia de outros filósofos, neste campo)

sobre as mulheres…

São, ao todo, 43 teorias, 43 capítulos escritos com humor (a maioria das vezes, fino), em tom divertido

[presente nos próprios exemplos ou nas muitas experiências mentais a partir dos quais são formulados problemas filosóficos: “Imagine que certa noite, a alma de um príncipe, com todos os seus pensamentos principescos, entra no corpo de um mendigo. Quem é que acorda no pijama do mendigo no dia seguinte?”]

leveza

(que jamais é ligeireza ou superficialidade: às tantas, Hayden adverte que “esta foi uma maneira leve de introduzir uma questão filosófica séria”)

e argúcia. Características conseguidas pelo género de escrita

(incluindo a linguagem utilizada: Nietzsche decretou a morte de Deus; Hayden pergunta se está mesmo morto ou ainda “está aí para as curvas”),

pelo recurso frequente à nossa experiência quotidiana, como ponto de partida para a explicação das teorias ou dos argumentos ou das críticas aos filósofos

(o capítulo 37 avalia a opinião de A. J. Ayer, segundo o qual não é possível discutir o que é certo ou errado; concretamente, será possível saber se o sexo antes do casamento é errado?)

– e, não obstante isso, pelo rigor dos conhecimentos transmitidos.

… Nem Estas Virtualidades

Contrariamente ao que se poderia supor a partir do que fica dito, os capítulos não apresentam ideias isoladas; cada um deles termina remetendo para outro(s) cujo tema de algum modo lhe está associado: por exemplo, a ideia de Parménides segundo a qual nada muda (capítulo 5) é ligada à sua contrária, a de que nada permanece, de Heraclito (capítulo 6) e à de que Harry Potter existe (e o Pai Natal, também) – existência decorrente da teoria de objetos do filósofo austríaco Alexius Meinong (ver capítulo 29, o qual remete para o anterior capítulo 5 e para o 36, o qual por sua vez remete para os 8, 29 e 42…). Julgo ser fácil intuir as virtualidades desta teia de relações.

Imensas virtualidades, têm também o índice remissivo final e, particularmente, a secção “Outras leituras”. Sendo uma iniciação à Filosofia, nestas mais de 11 páginas de indicações bibliográficas orientadas, por capítulos, “Não Descartes Estas Ideias” abre caminhos a investigações mais alargadas a quem se interessar por algum dos temas, a leituras estimulantes, fascinantes ou divertidas: “para molhar os pés no oceano que é a filosofia de Platão”; para “uma incursão divertida na vida e nas ideias de Pitágoras”; para um resumo claro e uma apresentação dos principais temas e ideias do trabalho monumental que é a filosofia de Locke; para um panorama geral do tema vasto e complexo que é o hinduísmo ou os ensinamentos de Buda…

Em suma, “Não Descartes Estas Ideias” é uma interessantíssima e muito útil introdução à filosofia (e não apenas, mas também, à História da Filosofia), incluindo para (sobretudo para?) leigos nas lides filosóficas. Ou para os alunos (portugueses) de filosofia do ensino secundário (tanto os do 10º ano como os do 11º) Porque aborda temas muito variados, da epistemologia e a lógica à ética, da política ao sexo e à religião. Porque o faz de um modo não convencional, claro, acessível, mas rigoroso.

É, além disso, um desafio aos nossos pressupostos ou preconceitos – além disso ou antes por causa disso: no final das mais de 200 páginas, o leitor corre o sério risco de concordar com conclusões que, no início, lhe pareceriam puras bizarrias… que nem aos filósofos nos lembraríamos que pudessem lembrar. Este derrubar de preconceitos não é seguramente um interesse menor do livro, tanto por potenciar o enriquecimento do universo espiritual/mental pessoal quanto se o considerarmos como treino para o exercício da reflexão filosófica.

Como se pode fazer este treino de reflexão filosófica, mostra-o Hayden amiudadamente quando, depois de argumentadamente nos ter levado a aceitar que aquela ideia risível daquele filósofo tolo afinal “faz sentido”, vira o bico ao prego e apresenta críticas à mesma, feitas por outros filósofos ou… pelo leitor, a partir das próprias vivências invocadas pelo autor. Para exemplificar, sirva o caso da falácia do “Nenhum Escocês é Verdadeiro” aplicada à filosofia moral de Sócrates. Por vezes, as críticas não precisam de ser longas para serem desconcertantemente claras (convincentes?), como a que o autor dirige ao argumento com que Leibniz defende a teoria já acima referida (a de que vivemos no melhor dos mundos): “Leibniz inverteu o argumento antiteísta: uma manobra metafísica tão ousada que nos lembra a história da jovem que assassinou os pais e depois pediu ao juiz que tivesse pena de uma pobre órfã”.

É difícil fechar “Não Descartes Estas Ideias”, depois de lido, e não ter percebido a razão de tanta bizarria filosófica. Essa razão, encontramo-la explicitada logo nas páginas iniciais, antes do primeiro capítulo, mas no final a compreensão (e o nosso convencimento) há de ser outra:

os filósofos debatem-se “com questões difíceis e profundas, com o tipo de questões que levam o conhecimento ao seu limite – e mais além. […] Ao investigar tais questões, os filósofos afastam-se da linha vulgar de pensamento. Assim sendo, não surpreende que tenham ideias que nos soam profundamente bizarras”.

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