Aristóteles e a felicidade

A questão da felicidade: proposta de debate

Nota introdutória: este texto sobre um possível tratamento filosófico do tema da felicidade foi traduzido do livro Filosofía: Serie para la enseñanza en el modelo 1 a 1, da autoria de Gustavo Schujman, numa edição do Ministério da Educação da Argentina. É um manual de distribuição gratuita que “constitui uma proposta de trabalho para o ensino da Filosofia fazendo uso dos recursos e das possibilidades expressivas que oferecem as tecnologias da informação e comunicação (tic)”

 

Felicidade e Mafalda

 

A felicidade foi uma questão debatida e conceptualizada na filosofia clássica. Contudo, na atualidade, este parece ser um tema menor, superficial, presente nos livros de autoajuda ou promessa das publicidades.

Precisamente porque os meios de comunicação e a cultura atual promovem o entretenimento, o prazer imediato, o consumo compulsivo ou o êxito económico, como sinónimos de felicidade, é que se torna necessário repensar esta questão, distanciando-nos criticamente destes imperativos sociais, que costumam produzir, paradoxalmente, seres infelizes e insatisfeitos.

Trata-se de voltar a filosofar sobre o assunto, analisando e pondo em questão a realidade circundante. A partir desse distanciamento crítico, é possível voltar à felicidade como declaração vital de uma vontade capaz de assumir o próprio desejo e desafiar os factos pretendendo o melhor para si e para os outros.

A felicidade na ética clássica… e na atualidade

O foco de reflexão da ética clássica foi o da chamada vida boa. As suas perguntas centrais foram:

  • como é viver uma vida boa?
  • que é a felicidade?
  • há possibilidade de a caracterizar em termos universais?
  • seria conveniente tentar fazê-lo?

Ao trabalhar esta questão na aula de Filosofia, o objetivo seria o de atualizar estas perguntas, que estão relacionadas com a dimensão valorativa de cada sujeito e se formulam num contexto em que a diversidade de modelos de vida é crescente e complexa. Nesse contexto plural e diverso, os e as adolescentes vão constituindo a sua subjetividade. Por tal razão, este espaço filosófico não é um espaço para unificar critérios ou para homogeneizar o que se entende por felicidade. Em definitivo, a felicidade não pode ser definida a partir de fora, embora seja possível questionar alguns pressupostos sobre ela.

Debate sobre a felicidade

Uma possível atividade introdutória consiste em propiciar um debate a partir de questões como as seguintes:

  • O que é ser feliz?
  • Ser feliz e estar feliz significam o mesmo?
  • Felicidade é sinónimo de bem-estar?
  • Que semelhanças e que diferenças se podem estabelecer entre felicidade e entretenimento?
  • A felicidade é ausência de sofrimento? Porquê?
  • A felicidade é ausência de frustração? Porquê?
  • Todos/as desejamos ser felizes? Porquê?
  • A felicidade é alcançável? Porquê?
  • Se é alcançável, quais são os seus requisitos ou condições?
  • Há diferenças entre felicidade e prazer? Quais?
  • Há diferenças entre felicidade e alegria? Quais?
  • Há prazeres bons e prazeres maus?
  • Pode estabelecer-se uma hierarquia de prazeres?

O docente pode ir coordenando a discussão, solicitando exemplos e aprofundamento das argumentações, e recuperando os aspetos mais significativos do debate.

Também podem ser analisados com os os/as estudantes textos como os seguintes:

Não é ao jovem que se deve considerar feliz e invejável, mas ao ancião que viveu uma vida bela. Pois o jovem, na flor da idade, está sujeito a muitas mudanças, arrastado pela sorte. Ao contrário do ancião, que ancorou na velhice como em um porto seguro e os bens que antes esperava desesperadamente possui-os agora com uma alegria segura.

[Epicuro. Exortações, 17]

  • Que entende Epicuro por felicidade?
  • Por que razão considera que a pessoa de idade é a que está em melhores condições de ser feliz?
  • O que pensam desta conceção de felicidade?

Cometi o pior dos pecados
que um homem pode cometer. Não fui
feliz. Que os glaciares do esquecimento
me arrastem e me percam, despiedados.

Os meus pais engendraram-me para o jogo
arriscado e formoso da vida,
para a terra, a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida

não foi a sua jovem vontade.
[…]

Legaram-me coragem. Não fui valente.
Não me abandona. Sempre está a meu lado
a sombra de ter sido um desgraçado.

[Jorge Luís Borges. O remorso]

  • Porque é que este poema de Borges se chama “O remorso”?
  • Que relação estabelece Borges entre felicidade e valentia?

A felicidade em teorias filosóficas

Aristóteles e a felicidade

[Aristóteles discutindo com o seu mestre Platão.
Pormenor do quadro Escola de Atenas, de Rafael]

Um dos primeiros pensadores que escreveu sobre a felicidade foi Aristóteles. No livro I, especialmente nos capítulos 1, 2 e 7 da sua Ética a Nicómaco, Aristóteles desenvolve essa questão. Afirma neste livro que todos os atos humanos têm um fim. Sempre que fazemos algo, fazemo-lo para atingir uma meta ou um objetivo. A nossa vida vai ganhando forma como uma cadeia de fins. Atuamos para conseguir um fim que nos propomos, mas esse fim é por sua vez um meio para outro fim. Se o ato não tivesse nenhum fim, para além do prazer de o realizar, careceria de sentido. No entanto, pensa o filósofo grego, tem que existir um fim último, um fim que não seja um meio para outro fim, um fim que se queira por ele próprio, que tenha um valor intrínseco. É necessário que exista esse fim supremo pois, se não existisse, a cadeia de fins que é a nossa vida ficaria vazia de sentido. Para que é que fazemos tudo o que fazemos? Se essa pergunta não tivesse resposta, então a nossa atividade seria inútil, absurda. Esse fim último existe e é a felicidade. A felicidade deseja-se por si própria e não para outra qualquer coisa. Ninguém deseja ser feliz para conseguir outro objetivo. A felicidade não é um meio. Para que queremos ser felizes? Para ser felizes.

As e os estudantes podem ler os capítulos 1, 2 e 7 do livro 1 do texto de Aristóteles guiados por perguntas como as seguintes:

  • O que entende Aristóteles por felicidade?
  • Que a felicidade seja o fim último significa que se encontra no final do caminho? Justifiquem a vossa resposta.
  • Estão de acordo com a ideia segundo a qual o sentido de cada ato está no fim que este ato persegue? Porquê?

Outro autor clássico que se referiu a esta questão foi John Stuart Mill (1806- 1873), um dos expoentes mais importantes do utilitarismo. A leitura da sua obra intitulada O utilitarismo, em especial o capítulo II (com o título “O que é o utilitarismo?”) é muito recomendável já que se trata de um texto curto e escrito com simplicidade e clareza, o que permite que as alunas e os alunos entrem no pensamento do filósofo sem necessidade de ler previamente algum comentador da sua obra.

Face aos que opinam que a felicidade é inalcançável, Mill responde que é alcançável sempre que não a consideremos como uma vida em contínuo êxtase, mas como uma vida com momentos de exaltação, com poucas e transitórias dores e muitos e variados prazeres. Além disso, a utilidade como princípio não inclui apenas a busca da felicidade mas também a prevenção ou mitigação da desgraça. O princípio propõe que toda a pessoa se ocupe ao mesmo tempo, tanto da promoção da sua felicidade particular quanto do incremento do bem-estar geral de todos os seres humanos, contribuindo assim para a produção da maior felicidade total. Segundo a teoria utilitarista, devemos atuar procurando conseguir a maior felicidade possível para a maior quantidade de gente possível. Por isso, Mill põe a ênfase na necessidade de que a política e a educação nivelem as desigualdades e gerem em cada indivíduo um sentimento de unidade com tudo o resto, isto é, que não pense no benefício pessoal sem incluir os outros nesse benefício. Por outras palavras, que se subordine a felicidade individual à felicidade geral pois esta última garante a primeira.

A leitura pode ser guiada por perguntas como as seguintes:

  • Como classifica Stuart Mill os prazeres? Estão de acordo com esta classificação? Porquê?
  • Que relação estabelece o autor entre felicidade e prazer?
  • A teoria de Mill justifica o sacrifício pessoal a favor da felicidade geral? Assinalem parágrafos do texto que justifiquem as vossas respostas.

A felicidade em filmes

Após estas aproximações ao tema, o docente pode solicitar aos seus alunos que analisem conceções de felicidade e projetos de vida em filmes. Por exemplo, trabalhando com a comédia estado-unidense Little Miss Sunshine (Pequena Miss Sunshine (título no Brasil) ou Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos (título em Portugal)) ou o filme argentino Histórias Mínimas (2002), dirigida por Carlos Sorín.

Depois de ver o filme, o docente pode propiciar um debate guiado por perguntas como as seguintes:

  • Pode afirmar-se que cada personagem tem o seu projeto de vida? Em que consiste esse projeto?
  • Podem distinguir-se no enredo momentos de prazer, alegria, dor, felicidade? Quais são esses momentos?
  • Todos os personagens procuram a felicidade?

Para justificar as suas respostas, escolham algum dos personagens e selecionem cenas do filme. Para o fazer, podem utilizar o  editor de vídeo Movie Maker, que permite recortar o fragmento que escolherem.

Movie Maker

É um software que permite editar vídeo e juntar áudio e efeitos visuais ao vídeo original. Deste modo, possibilita a construção criativa de material audiovisual por parte dos estudantes.

Ao docente, permite-lhe realizar um recorte do material audiovisual selecionado para trabalhar com os estudantes, ajustando assim o conteúdo aos propósitos de ensino.

Recursos sugeridos

Textos

Aristóteles, Ética a Nicómaco. Pode encontrar-se em vários sítios da Internet.

John Stuart Mill, O utilitarismo. Pode igualmente encontrar-se em vários sítios da Internet.

Filmes

Ambos os filmes referidos podem encontrar-se no YouTube: basta fazer uma pesquisa.

A felicidade na publicidade

Um modo adequado de aprofundar este tema é analisando publicidades televisivas atuais e compará-las com publicidades de outros tempos. O objetivo é que se visualizem diversos modelos de vida, diversas valorizações e conceções da felicidade em distintos contextos. No YouTube podem encontrar-se compilações de publicidades das décadas de 1960, 1970, 1980, 1990 e de 2000. As e os estudantes podem dividir-se em grupos e analisar a promoção de um tipo de produtos. Por exemplo, um grupo analisará as publicidades referentes a bebidas alcoólicas, outro grupo ocupar-se-á das referentes a alimentos, outro às que publicitam automóveis, outro às publicidades a artigos de limpeza.

Cada grupo apresentará as suas conclusões acerca das publicidades analisadas, mostrando as semelhanças e diferenças e explicitando as conceções de felicidade que estão presentes nelas.

Finalmente, para encerrar este bloco temático, os alunos podem produzir pósteres para apresentar ao resto do grupo, com imagens e frases selecionadas das publicidades que exponham a ou as conceções de felicidade que estejam presentes nesses materiais. Para esta tarefa, recomenda-se o uso da plataforma Glogster.

YouTube

Constitui um repositório de material audiovisual de acesso irrestrito. Mediante o motor de busca que o sítio possui podem encontrar-se fragmentos de filmes de ficção, documentários, clips de música, material de arquivo (televisivo, radiofónico, etc.) e um vasto e heterogéneo material produzido, editado e socializado pelos utilizadores. Neste sentido, o seu potencial didático não radica simplesmente em que o docente ou os estudantes possam procurar material; este espaço web dá também a possibilidade de enviar materiais produzidos ou editados pelos próprios alunos.

Glogster

É uma rede social virtual gratuita que permite a criação de cartazes interativos com uma ampla gama de opções de desenho possibilitando simultaneamente a utilização de textos, áudios, imagens, fotografias, vídeos, efeitos
especiais, entre outros.

A partir do ambiente Glogster pode promover-se o trabalho colaborativo, promovendo o desenvolvimento criativo de ideias com o rigor concetual requerido pelo tratamento de um tema.

*** Notas d’O Meu Baú ***

||| Para Kant (1724-1804), a felicidade será o resultado de uma vida em que cumpramos o dever (o dever moral), em que ajamos por puro respeito pela lei moral (isto é, independentemente de qualquer inclinação sensível ou afetiva: se eu ajo por amor ou compaixão ou esperando uma recompensa como o paraíso ou por medo como o medo do inferno, já não ajo por dever). Assim e por exemplo, para Aristóteles ser generoso é tão mais virtuoso quanto mais vantagem nos trouxer; para Kant, é tão mais virtuoso quanto menos satisfação daí resultar. [Ver desenvolvimento na entrada do dicionário sobre Kant]

||| André Comte-Sponville lembra que “Ser feliz, etimologicamente, é ter sorte. Isso diz o bastante sobre a felicidade: não é que a sorte baste para alcançá-la, mas nenhuma felicidade, sem sorte, é possível. (…)”. Por outro lado, “Ser feliz também é ter a sensação de sê-lo. É o que Marcel Conche chama de cogito eudemónico de Montaigne: ‘Penso ser feliz, logo sou feliz. […] Em vez de estar sempre lamentando o que não é (‘Que infelicidade não ser feliz!’), aprenda sobretudo, quando possível, a gozar o que é (‘Que felicidade não ser infeliz’!)” (Dictionnaire philosophique, p. 273).

||| Talvez lhe interesse ainda Aconselhamento filosófico e felicidade: uma iniciação.

||| O texto a bizarria filosófica para totós apresenta um livro muito interessante para uma iniciação à filosofia: Não Descartes Estas Ideias. São analisadas mais de 40 ideias filosóficas que poderão parecer bizarras de início, mas com as quais poderemos até, depois de explicadas, concordar. De Epicuro, a sua conceção do prazer e a ideia de que, mesmo na roda, um sábio pode ser feliz (capítulo 21); a conceção de prazer segundo Sócrates (pp. 17-19), o princípio do karma (p. 59), Bentham (pp. 68-71), o Budismo (p. 119), Schopenhauer (o prazer e as mulheres: p. 122), São Tomás de Aquino (pp. 184-185).

 

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