Heroico Beethoven

2020 será, mundialmente, ano Beethoven: cumprem-se 250 anos sobre o nascimento do compositor alemão, batizado a 17 de dezembro de 1770.

Nas últimas décadas, a música pop e rock apropriou-se, de vários modos, da música de Beethoven. Um exemplo popular foi, por ocasião das comemorações do seu bicentenário, Himno a la alegría de Waldo de los Ríos: trata-se de um arranjo ligeiro do Hino à Alegria da Nona Sinfonia, que se transformou em hit mundial.

No Hino inspiram-se ainda canções como Road to Joy, de Conor Oberst/Bright Eyes ou Mr. Brightside, de The Killers… Outro arranjo da mesma melodia (sem letra) deu origem ao hino europeu. O Hino anda a viajar pelo espaço, incluído no disco de ouro enviado na Voyager II.

As quinta e nona sinfonias foram as mais “inspiradoras” de aligeiramentos. A Quinta, a “Sinfonia do Destino”, inicia com as possivelmente mais famosas quatro notas de toda a história da música (interpretadas como as pancadas do destino). Várias “versões” rock aproveitaram o caráter curto e repetitivo desse tema para gravar estrondosos êxitos de vendas e em alguns casos tornar as bandas respeitadas: se não os tem consigo, procure no Youtube (além dos exemplos anteriores) o arranjo do Ekseption; ou a A Fifth of Beethoven de Walter Murphy (que lhe imprime um ritmo disco, de que hoje é considerada um marco; a sua inclusão na banda sonora do filme Saturday night fever levou Murphy ao 1º lugar da lista Billboard Hot 100)…

Beethoven aligeirado

A lista dos “arranjos” que outras obras de Beethoven sofreram é enorme, em número e em sucessos, da balada romântica ao punk, heavy metal e hip hop. Se o tema lhe interessa, volte à fonte inesgotável que é o Youtube: procure Eurythmics; Die Toten Hosen (no Youtube); o filme Laranja Mecânica; Because dos Beatles (que se “inspira” na Sonata ao Luar); etc… e Chuck Berry o qual, com a canção Roll over Beethoven quis anunciar o fim do tempo dos clássicos a favor do rock ‘n’ rol, mas acabaria por publicitar o compositor de Bona.

Publicitar, disse eu, mas talvez erradamente. Na verdade, não é seguro que as “versões” aligeiradas de Beethoven o divulguem; uma imagem da música de Beethoven construída a partir delas é uma imagem… paupérrima, para dizer o mínimo que se pode dizer. Antes de mais, as “versões” ligeiras reduzem a duração da obra em que se inspiram a pouco mais do que a repetição do tema; ora, se a inspiração (aqui, nas ideias plagiadas) é a base da música, o seu desenvolvimento (elementaríssimo, nestes casos) é condição necessária a uma obra musical valiosa (já não digo genial). Retiram-lhe ainda aquilo que é a essência da música de Beethoven: a sua complexidade, a perfeição da forma, a majestosidade, a sua grandeza, o seu caráter dramático.

[Este vídeo é um trecho do filme americano “Copying Beethoven” (aqui dublado em italiano) produzido por Michael Taylor e estrelado por Ed Harris ( Beethoven) e Diane Kruger (Anna Holtz). Neste trecho Beethoven é o maestro e já surdo rege a orquestra com a ajuda de Anna Holtz que faz mímicas para que ele possa repetir e assim conduzir a orquestra].

Uma visão (romântica) do compositor

Seja como for, intriga-me a razão de tanto fascínio por Beethoven. Há quem o explique (romanticamente?) realçando ele ter sido “o grande individualista” e o primeiro grande compositor a defender o ideal moderno do artista, a desviar a música do seu destino aristocrático, a ditar condições aos seus editores (“Napoleão da música”, como se classificou, escreveu música à sua maneira: repudiou, indignado, a oferta de uma quantia em dinheiro de um inglês, para escrever uma sinfonia à moda antiga). “[T]emperamento vivo e sensível” (ainda palavras suas), obrigado pela surdez a “isolar-me cedo e passar a minha vida na solidão”, acabou decidido a “[saltar] à garganta do Destino”. Uma figura romanticamente excêntrica, esquisitamente mal vestido, brigando com os vizinhos… e escrevendo obras abstratas que rompem com a tradição musical.

A Terceira Sinfonia e a Revolução Francesa

A inspiração criadora de Beethoven alicerça-se nos ideais de liberdade e igualdade fraterna da Revolução Francesa, nos novos valores da Humanidade. É disso exemplo a terceira sinfonia (que disputa, com a quinta e a nona, a minha preferência). Escrita aos 32 anos, quando o compositor já tinha sintomas de surdez (a surdez que será o seu grande drama), o primeiro andamento arranca com dois golpes secos de toda a orquestra, como que a anunciar algo novo que corta com o que está para trás. Alguns críticos acusaram-na de “excesso de caprichos e novidades”, de “perigosa imoralidade”, de o público a ter considerado “muito extensa, complicada, incompreensível e excessivamente ruidosa”. Conta-se que, na estreia pública, a sua duração (50 minutos; a 9ª viria a ter mais meia hora) levou alguém a gritar da assistência que pagaria novo bilhete se aquilo terminasse nesse momento.

Beethoven: sinfonia 3, com o nome de Napoleão riscado

No entanto, ela abre novo capítulo na história da sinfonia; é uma sinfonia de rutura, que está para além das experiências do passado e do presente, em aspetos formais e na riqueza do conteúdo, colhido no espírito revolucionário. A ligação à revolução manifesta-se na própria dedicatória. A história está muito divulgada: Beethoven deu à Terceira o nome de Heroica, tencionando dedicá-la a Napoleão Bonaparte (cujo nome figurou em lugar de honra na capa do manuscrito), que incarnava os ideais republicanos da Revolução Francesa. Mas, ao saber que Napoleão se tinha feito coroar imperador, indignado, rasgou a inscrição original, que substituiu pela frase “À memória de um grande Homem”.

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||| O texto Heroico Beethoven 

… é o terceiro da série Histórias exemplares. O segundo (Quando começa o Ano Novo? uma pergunta pertinente) está aqui. O quarto (O fio de Ariadne: sobre minotauros e labirintos) está aqui.

||| Encontra aqui um índice de textos sobre Beethoven.

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