Problema mente-corpo: Descartes

Problema mente-corpo e Filosofia da mente

O capítulo 18 do livro Não Descartes Estas Ideias, de Gary Hayden, é dedicado a “um dos problemas mais aguerridamente debatidos e delicados da história da filosofia: o problema mente-corpo” (p. 95), isto é, a relação entre a mente e o mundo físico.

Em destaque, no capítulo, está a resposta de Descartes ao problema: a teoria dualista. O dualismo defende “que o universo contém dois tipos de substâncias: matéria e mente. A propriedade essencial da matéria é o facto de se prolongar (ou seja, ocupa espaço), ao passo que a propriedade essencial da mente é o facto de pensar” (p. 94).

O dualismo levanta outro problema: o da interação entre o corpo e a mente: como poderão interagir? “Como podem os acontecimentos mentais, como pensamentos, sentimentos e desejos, desencadear ações corporais? E como podem os processos corporais desencadear pensamentos, sentimentos e desejos?” (p. 95) Segundo o filósofo francês, essa interação “ocorre no cérebro, especificamente na glândula pineal, um órgão com a fomra de uma pinha situado entre os dois hemisférios” ( (p. 96). Na verdade, Descartes foi pouco explícito sobre como essa interação ocorre.

Outra resposta ao problema mente-corpo: o mundo real nada mais é do que o mundo físico. É a tese do fisicalismo. “A dificuldade de justificar a interação entre mente e corpo levou muitos filósofos contemporâneos a rejeitar de uma vez por todas o dualismo e a considerar a mente algo físico. Aqueles que rejeitam a existência de uma substância mental separada são conhecidos como fisicalistas” (p. 96).

O capítulo termina com referência a “[u]m dos mais ferozes críticos do dualismo[:] o filósofo de Oxford Gilbert Ryle (1900-1976). Foi ele quem cunhou a expressão ‘fantasma na máquina’ [título deste capítulo 18] para ridicularizar a visão dualista da mente e do corpo” (p. 96). Descartes convenceu-se de que a alma, não tendo forma nem dimensão nem estando localizada no espaço, “não tinha necessidade de um local para existir”; assim, a alma não estaria em lado nenhum: seria uma espécie de fantasma na máquina, mas um fantasma que não está na máquina.

Problema mente-corpo: Descartes[imagem copiada daqui]

Respostas ao problema mente-corpo

O livro de James RACHELS Problemas da Filosofia também dedica um capítulo (o sexto) ao problema mente-corpo. É, no entanto, um tratamento mais desenvolvido. Começa por apresentar a teoria defendida por Descartes (à semelhança de Sócrates), explicitando “duas ideias influentes sobre a diferença entre estados mentais e estados físicos” (p. 112):

  1. acesso privilegiado: cada pessoa tem um acesso especial aos seus próprios estados mentais (um acesso privado, por introspeção, ao contrário dos factos físicos, como as características do nosso corpo, conhecidos através da observação e da realização de experiências;
  2. infalibilidade: cada pessoa é infalível no que respeita aos seus próprios estados mentais: se pensamos estar a sentir dor, então estamos a sentir dor; se pensar que a raiz quadrada de 16 é 8, estou enganado quanto ao resultado, mas não há dúvida de que estou a pensar isso.

[São exemplos de estados mentais o ter medo, sentir dor, sentir vontade de comer um gelado…]

Depois, são apresentadas as objeções ao dualismo formuladas pela Princesa Elisabeth da Boémia, em correspondência que manteve com Descartes. A principal: como é que uma mente não física, imaterial, sem extensão, pode impelir um corpo físico. As críticas foram tão agudas e obstinadas que “Descartes ficou sem ideias”, tendo concluído que “o assunto era muito difícil” (p. 116).

Entretanto, a evolução da compreensão científica dos seres humanos fez recuar o dualismo, “teoria [que] desapareceu em grande medida da ciência e da filosofia” (p. 117), a favor de teorias materialistas da mente, que tentam explicar os factos mentais em termos puramente físicos. E Rachels apresenta três teorias materialistas:

  1. o behaviorismo explica a natureza dos pensamentos e das emoções unicamente em termos do comportamento (é o tema do capítulo 32 do livro de Hayden). É o caso do filósofo behaviorista Gilbert Ryle (ver acima), segundo o qual “os chamados estados mentais não passavam de comportamento”: “estar furioso é ser agressivo, gritar, dizer palavrões, atacar ou virar as costas a alguém” (p. 119). Negou o dualismo cartesiano, bem como as ideias de acesso privilegiado e de infalibilidade.
    Rachels apresenta objeções ao behaviorismo: parece manifestamente falso (há perceções que não são acompanhadas por comportamentos); “nem todos os estados mentais podem ser entendidos como padrões de comportamento ou de disposições comportamentais” (p. 121) (como, por exemplo, a experiência de ouvir… o Nocturno em dó menor de Chopin); comportamentos iguais (de duas pessoas) podem corresponder a estados mentais diferentes.
  2. a teoria da Identidade Mente-Corpo: a mente é o cérebro — uma identificação suportada pelas descobertas da neurologia do século XX.
    3 vantagens desta teoria: explica a natureza dos factos mentais sem referência a entidades ‘não materiais’ (evitando os já referidos problemas levantados ao dualismo); explica sem problema a interação entre estados mentais e acontecimentos físicos; explica a possibilidade de estados mentais sem a ocorrência de comportamentos (problema para o behaviorismo); ajuda a compreender o funcionamento da introspeção.
  3. o funcionalismo [1] defende que os estados mentais (por exemplo, ter dor) devem ser compreendidos pela sua função, são estados funcionais, independentes da sua base física (um extraterrestre pode sentir dor devido a um mecanismo diferente do nosso “disparo de neurónios”: continua a ser dor, mesmo tendo uma base física diferente). Um estado funcional caracteriza-se porque face a um determinado input (ocorrências físicas externas; por exemplo, um martelo cair no pé) reage com um determinado output (o que dizemos, comportamentos, reações; por exemplo, gritar) e estabelecendo relações com outros estados mentais (por exemplo, a dor dificultar a concentração).
    Um problema com o funcionalismo: é evidente o paralelo com um computador, que aceita inputs, realiza operações e produz outputs“: “[a] relação entre o corpo e a mente […] é como a relação entre o hardware e o software” (p. 131). Mas o ser humano é consciente, tem desejos e crenças… [2]

[1] Rachels faz notar a possibilidade de um funcionalismo não fisicalista (“os acontecimentos mentais podem não ser físicos, desde que desempenhem o papel causal apropriado” (p. 130). Mas prefere ignorar essa possibilidade.

[2] Nota do Baú: esta objeção é explicada também em Filosofar : da curiosidade comum ao raciocínio lógico, de Timothy Williamson [Lisboa : Gradiva, 2019, p. 132].

O capítulo termina explicando duas dúvidas sobre as teorias materialistas em geral(pp. 132-136):

  1. Subjetividade. As experiências mentais têm um caráter subjetivo; “[t]er um ponto de vista […] — ser um sujeito de experiências — é a essência de ter uma mente. […] No entanto, o caráter subjetivo da experiência está ausente nas teorias materialistas que analisámos. Estas teorias falam-nos do comportamento, de estados cerebrais e do funcionamento de sistemas, mas nada disto corresponde ao aspeto do verde ou ao sabor da ameixa. Como poderá um estado cerebral ou um processo computacional ser o sabor de uma ameixa? Afirmar que são idênticos parece mais uma formulação do que uma resolução do problema” (pp. 132-133).
  2. A estas teorias também lhes escapa aquilo que Franz Brentano (1838-1917) chamou intencionalidade dos estados mentais: os estados mentais são sobre coisas que não eles próprios (p. 133). O que significa esta intencionalidade? “Há algumas maneiras óbvias de tentar compreender como os objetos físicos podem ser intencionais, mas nenhuma delas funciona muito bem” (p. 134) [p. 134-5: análise de algumas dessas maneiras]. “A noção de intencionalidade é enigmática” (p. 135), é um problema tanto para o materialismo como para o dualismo…

…”Uma opção mais prudente, portanto, pode ser aguardar desenvolvimentos. Por agora, ninguém sabe como resolver o problema mente-corpo” (p. 136).

Leia também…

||| A Filosofia da Mente é a área da filosofia que estuda questões como o problema mente-corpo; a sua preocupação central é o entendimento humano da mente e o seu lugar no mundo físico.

Outros problemas: é a mente distinta da matéria? Poderemos definir em que consiste ser-se consciente? Poderemos fornecer razões de princípio para decidir se outras criaturas são conscientes, ou se é possível construir máquinas que sejam conscientes? O que é o pensamento, o sentimento, a experiência, a memória? Será útil dividir as funções mentais, separando a memória da inteligência, ou a racionalidade do sentimento, ou será que as funções mentais formam um todo integrado? [Simon BLACKBURN. Dicionário de Filosofia, verbete Filosofia da mente]

||| O capítulo 2 [“Mente”] de Pense : Uma Introdução à Filosofia, de Simon BLACKBURN, é dedicado à Filosofia da Mente, incluindo o problema mente-corpo.

||| Filósofos : um guia dos 100 pensadores mais importantes do mundo de Peter J. King [Londres : Quarto, 2005] agrupa as abordagens ao problema mente-corpo em dois tipos principais: “o dualismo, que afirma que a mente e o corpo são tipos diferentes de coisas, com propriedades diferentes e o monismo, que afirma a existência de um único tipo de coisa e de propriedade. Embora tenham existido monistas (nomeadamente Berkeley) que admitiram que esse tipo de coisa era mental, a posição vulgar é o materialismo ou o fisicalismo” (p. 91).

O autor analisa depois o dualismo de alguns filósofos (Platão, Aristóteles, Descartes e Espinosa — que normalmente é referido como monista) e variadas formas de fisicalismo.

||| Fernando BRONCANO (ed. lit.). La mente humana. Madrid : Trotta-CSIC, 1995. Coleção de treze textos (em espanhol), articulados em 3 partes: a) exposição das principais conceções atuais da mente; b) a noção de intencionalidade; debate sobre o caráter causal dos conteúdos mentais; c) diversos aspetos da mente, como a linguagem, a racionalidade ou a perceção.

Sumário : Presentación.- La tesis de la identidad mente-cuerpo.- El funcionalismo.- La concepción teológica de los estados mentales y de su contenido.- Teorías de la arquitectura de lo mental.- El conexionismo y su impacto en la filosofía de la mente.- Teorías del contenido mental.- Eliminativismo y el futuro de la Psicología Popular.- Evolución y lenguaje– El control racional de la conducta.- Percepción.- Qualia: propiedades fenomenológicas.- Conciencia.- Índice analítico.- Índice de nombres.- Nota biográfica de los autores.

 

 

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