A 11 de setembro de 1935, nasceu em Paide, na Estónia, o compositor Arvo Pärt. António Victorino D’Almeida [Toda a Música que eu conheço. Cruz Quebrada: Oficina do Livro, volume II, 2008, p. 574-575] traça, nestes termos, o seu percurso musical:
[…] estudou no Conservatório de Tallin, trabalhando muito para a rádio e para cinema, tendo composto a banda sonora musical de cerca de cinquenta filmes.
Ainda num estilo de certo modo tradicional, foi premiado por uma Cantata para crianças, O Nosso Jardim, mas voltou-se mais tarde para uma escrita serial rigorosa, com Perpetuum Mobile.
Tempos depois, começou a desenvolver uma técnica de colagens, nomeadamente na sua Sinfonia n.° 2 e em Pro et Contra, para violoncelo e orquestra.
Há, todavia, que salientar que Arvo Pàrt nunca surge como um experimentalista, pois quando se entrega a uma nova técnica, fá-lo com a segurança de alguém que nunca tivesse trabalhado noutro estilo…
E assim que, por volta de 1970, se interessou pelo cantochão e pela música da Igreja Ortodoxa, escrevendo já debaixo dessa influência a Sinfonia n.° 3 e uma das suas obras-primas: Tabula Rasa, para três violinos, orquestra de cordas e piano preparado — mas não no sentido de «castração» que a expressão «preparado» assume em relação aos gatos e também a um grande número de peças lamentáveis escritas para piano com diversos objetos espalhados no meio das cordas…
Ou seja:
Numa obra como Tabula Rasa fica inequivocamente esclarecido que não é o piano preparado que deve ser criticado, muito pelo contrário, mas sim o anémico efeito musical que alguns compositores tiraram — ou ainda tiram — dos sons do instrumento assim modificado, descredibilizando com a sua inépcia essa e muitas outras experiências.
Num Concerto ou numa gravação de Arvo Pärt podemos escutar uma fanfarra, denominada Arbos, na qual o compositor repete vezes sem conta uma mesma frase, obedecendo a um sistema iniludivelmente minimalista.
A verdade, porém, é que a frase repetida constitui uma estrutura instrumental rica e complexa que justifica em pleno o efeito da repetição, pelo que não se trata, uma vez mais, de uma experiência, mas de um objetivo claramente atingido.
Logo a seguir, será possível ouvir-se uma obra mística, baseada em elementos corais, intitulada An der Wassern zu Babylon e construída à base de música do século XIII.
O contraste com Arbos é flagrante.
No entanto, sente-se que é música baseada numa mesma filosofia. E essa filosofia é o humanismo, que não se verga a qualquer espécie de esteticismo refinado, deleite de alguns intelectuais — mas concretamente acéfalo…
Num terceiro número, poderá escutar-se Pari Intervallo, que é uma peça para órgão, abrindo o caminho para um De Profundis, no qual o registo baixo das vozes evoca a atmosfera de uma liturgia ortodoxa.
Es sang vor langen Jahren mudará completamente de atmosfera, com um diálogo entre uma voz feminina e as cordas de um conjunto de câmara, sugerindo de novo um arcaísmo medieval de carácter mais ocidental, que se prolonga em Summa, com características semelhantes.
E, por último, teremos um poderoso e emotivo Stabat Mater, englobando vários destes elementos, nomeadamente o regresso ao órgão, ao medievalismo, à liturgia ortodoxa…
Na verdade, serão sete peças distintas, muitas delas antagónicas, mas que podem ser apresentadas de seguida, sem que isso implique uma quebra estilística ou qualquer espécie de desequilíbrio estético, o que só acontece se, por detrás dos efeitos técnicos — que são muitos e bons, aliás… — existir efetivamente uma substância.
A música de Pärt começa por vezes a imergir das trevas de um intelectualismo aparentemente opaco, não é despida de ornamentos, pois eles fazem muitas vezes parte integrante da linguagem estética (como já terei dito algures, o ornamento na música de Chopin constitui um valor orgânico e absolutamente fundamental), mas cedo se nota que o compositor busca acima de tudo a substância, a transmissão das ideias e das emoções, e acaba sempre por se transformar num hino ao humanismo.
Apesar do sentido religioso — e certamente pesado — que as envolve, obras como Te Deum, Miserere, Cantate Domino ou Credo de Arvo Pärt trazem consigo um cheiro que não será necessariamente de santidade, mas sem dúvida de renovação…
E há que não esquecer que a renovação é um valor sagrado.
Além dos vínculos ao minimalismo, é hábito realçar que Pärt utiliza uma técnica a que chamou tintinnabuli (do latim, ‘pequenos sinos’). Na obra citada (p. 573), Victorino D’Almeida descreve-a assim:
Arvo Pärt diz estar muito diretamente associado a um estilo a que chama tintinnabuli — e que nada tem que ver, escusado será dizer, com a figura da banda desenhada de Hergé…
No entanto, o compositor parece-me muito mais explícito quando esclarece que a sua música é como uma luz branca em que estão contidas todas a cores.
Só um prisma é que poderá dissociar e tornar visíveis essas cores — e esse prisma será, segundo ele também afirma, o espírito do ouvinte.
Entendo muito melhor isto do que a técnica do tintinnabuli…
De qualquer modo, o tintinnabuli funciona num grupo de cinco peças de uma inenarrável delicadeza, lembrando a fragilidade de certas porcelanas, em que duas delas se chamam Para Alina, tocadas em piano solo, e as outras três intitulam-se Espelho no Espelho, sendo duas para violino e piano e uma para violoncelo e piano.
Na realidade, o estilo tintinnabuli consistirá num efeito de pedal que permite que se mantenha a vibrar uma oitava grave do piano, enquanto se desenvolve por cima uma melodia muito simples, a qual se funde com os sons de um acorde perfeito, por intermédio das vibrações por simpatia das diversas cordas postas a vibrar…
Será mais ou menos isto…
As Gymnopédies de Satie, conhecidas pela sua lentidão e passividade, soarão como um french cancan desenfreado ao lado da atmosfera etérea — ou translúcida — destas cinco peças de Arvo Pärt.
E o fidalgo alemão que encomendou a Bach as Variações Goldberg, alegadamente para resolver os seus problemas de insónia, ficaria claramente mais bem servido com esta obra de Arvo Pärt, pois adormeceria em estado de graça.
Contudo, quero deixar bem explícito que, a despeito de não ser grande apreciador deste estilo de obras muito longas — e presumo que também muito místicas, já nos domínios do esotérico… –, rendo-me à evidência de que se trata de momentos de uma indescritível ou mesmo inexplicável beleza.
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||| Proponho a audição…
de Cantus in memoriam Benjamin Britten (uma das primeiras obras em estilo tintinnabuli):
…e de Tabula Rasa (a expressão do desejo de regressar aos elementos básicos do som, para criar música inocente e pura)…
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