SONS # 5 LIED

aqui fiz referência ao lied (por ocasião da morte de um dos grandes cantores do lied: Dietrich Fischer-Dieskau).

Não existe uma tradução satisfatória do termo «lied». «Canção» é muito vago e «canção de arte» obviamente insatisfatório. O lied é um tipo de composição que teve a sua origem no período clássico, mas que alcançou o zénite como contributo característico dos compositores românticos. É a adaptação musical de um poema lírico a voz e piano em que se faz uma tentativa para realizar a melodia inerente ao poema. A isto se acrescenta um fundo instrumental de carácter interpretativo, por vezes meramente pitoresco, e com mais frequência de profundo conhecimento psicológico. Não é aceite qualquer padrão de repetição. A estrutura é condicionada pelo conteúdo do próprio poema. A configuração estrófica simples raramente se encontra no lied, e só ocasionalmente se utiliza a estrutura ABA — afirmação, contraste, afirmação. Mas também aqui o compositor variará o acompanhamento, restando portanto poucos vestígios da ária formalista rígida.

Uma canção deste tipo depende muito, para fins de efeito, da qualidade do próprio poema. Os compositores românticos tiveram a sorte de se seguirem de perto a um período de grande poesia lírica. Poetas como Goethe, Schiller, Heine e Muller forneceram as letras das canções de Schubert, Schumann, Brahms, Franz e Wolf. O resultado desta colaboração é a imperecível glória do lied oitocentista. Estas canções são música popular no melhor sentido do termo. Sem preocupações de aparato, de estrutura simples e melodiosa, são mais para desfrutar na intimidade do lar do que para a sala do concerto de colarinho engomado, e como tal têm sido conhecidas e apreciados em todo o mundo.

Schubert é inegavelmente o maior mestre do lied. Os seus incomparáveis dotes melódicos uniam-se a um instinto dramático seguro que se manifesta na sua escolha de harmonias e na disposição do acompanhamento. Abrangem todos os estados de espírito, da mais terna e delicada fantasia à emoção forte e tempestuosa. Schumann, com uma gama de emoções menor, é igualmente um compositor de grande fertilidade melódica. Possuindo talvez uma discriminação literária mais profunda do que Schubert, ultrapassa-o por vezes em penetração psicológica de pensamento poético. Mestre do piano, os seus acompanhamentos são muitas vezes de uma beleza mágica.

[MOORE, Douglas. Guia dos estilos musicais: do madrigal à música moderna. Lisboa: Edições 70, imp. 1991, p. 134-135. Negritos meus]

No texto sobre Fischer-Dieskau, propus a audição de alguns lieder de Schubert. Por isso, preferirei aqui os de Robert Schumann (os textos de introdução são de Douglas Moore, da obra citada, p. 137). Dois:

Die Lotosblume (A flor de lótus)

O poema, […] de Heine, é caracteristicamente romântico na personificação da natureza. Fala da flor de lótus que murcha perante os intensos raios do sol e sonha com a chegada da noite. A lua é o seu verdadeiro amante e, para ela, a flor abre, resplandece e exala o seu perfume. A melodia está cheia da qualidade poética do lírico. E apoiada por harmonias de cor subtil e movimento suave.

Die beiden Grenadiere (Os dois granadeiros)

Baseada noutra obra de Heine, esta canção é uma narrativa sobre dois soldados franceses feitos prisioneiros na Rússia durante a infortunada campanha de Napoleão. Agora libertados, mas sofrendo ainda de ferimentos, lamentam-se pelas notícias do derrube dele. Um fala da mulher e do filho que tem na pátria; se não os tivesse, gostaria de morrer. O outro só consegue pensar no seu imperador derrubado. Pede ao companheiro para, se morrer, ser levado para França para ser enterrado. Então, quando o imperador voltar a erguer-se para a batalha, ele levantar-se-á da campa para o defender. Schumann deu a esta canção um fundo militar por meio do ritmo do acompanhamento. O sentimento do sofrimento e desencorajamento é, pois, expresso simultaneamente pela melodia e a harmonia. Um clímax final de fervor patriótico desemboca numa citação melódica de A Marselhesa. No fim, a voz cala-se e o acompanhamento sugere de novo exaustão e dor.

Compare o leitor a anterior interpretação do segundo lied com esta outra (e diga-nos qual prefere):

3 thoughts on “SONS # 5 LIED”

  1. António, ao contrário do autor do texto acho que “canção” é uma tradução satisfatória do termo “lied”. Por que não haveria de ser? Tal como o termo francês “chanson” se traduz satisfatoriamente da mesma maneira, quer estejamos a pensar nas chansons dos pioneiros longínquos Machaut e Dufay como de Poulenc ou ainda de Chevalier, Trenet, Piaf, Brel, Brassens e Aznavour, entre outros. O facto de as canções de Brassens, Poulenc e Dufay serem diferentes é irrelevante e seria estranho se não o fossem.

    Quanto a Dichterliebe, de Schumann, deixa-me só sugerir a interpretação do barítono Christian Gerhaher, acompanhado ao piano por Gerold Huber (RCA Red Seal). Foi-me recomendado pelo meu amigo responsável pela secção de música clássica da Fnac Guia (um jovem ciclista e amante de boa música, com quem passo uns bons tempos a conversar sempre que lá vou) e já me fartei de lhe agradecer a sugestão. É dos discos que mais ouço. Simplesmente tocante.

    1. Aires, reforças a minha ideia de que a Fnac tem, nessa área, funcionários competentes (por vezes, encontramos alguns que deixam a impressão de que estão a vender livros mas poderiam estar a vender frigoríficos, com a mesma falta de informação). Há (pelo menos) um “assim” na Fnac de Viseu e conheço um outro na do NorteShopping do Porto (encontrei um outro no Corte Inglés de Gaia, na secção dos vídeos).

      Obrigado pela sugestão (que vou seguir, claro).

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