Xerazade, o Rei e as Palavras

image

Nasci num harém em 1940, em Fez, Marrocos…

assim começa Sonhos Proibidos [Fatima Mernissi. Sonhos Proibidos: Memórias de um Harém de Fez. Lisboa : Edições Asa, 1998], uma exótica e admirável narrativa.

Tecendo a sua história com palavras carregadas de magia e sortilégio, Fatima Mernissi — socióloga de renome internacional e uma das vozes proeminentes do feminismo no mundo muçulmano — revela-nos as suas memórias através dos sonhos e das fantasias das mulheres que com ela partilharam a infância.

Com um fascínio comparável ao das “Mil e Uma Noites”, Sonhos Proibidos abre-nos assim as portas de um mundo pleno de sensualidade e mistério e deixa-nos perceber o harém como metáfora profunda de uma sociedade.

Transcrição do capítulo Xerazade, o Rei e as Palavras:

Um dia à tarde a minha mãe arranjou o tempo necessário para me explicar por que os contos de As Mil e Uma Noites se chamavam assim. Não era nenhum acaso, pois em cada uma daquelas incontáveis noites Xerazade, a jovem esposa, teve de contar uma história emocionante e envolvente para conseguir que o seu marido, o rei, esquecesse o seu terrível plano de a executar ao amanhecer. Fiquei aterrorizada.

– Mãe, queres dizer que o rei chamaria o seu siaf se não gostasse do conto de Xerazade?

Continuei a procurar alternativas para a pobre rapariga. Eu queria que houvesse outras possibilidades. Por que não podia o rei deixar que Xerazade vivesse embora não gostasse do conto? Por que não podia Xerazade dizer simplesmente o que quisesse sem ter de se preocupar com o rei? Ou por que não podia dar a volta à situação no palácio e pedir que o rei lhe contasse a ela uma história empolgante todas as noites? Assim ele compreenderia como era horrível ter de agradar a alguém que nos podia cortar a cabeça. A minha mãe disse-me que primeiro eu tinha de conhecer os detalhes e que depois poderia procurar soluções.

Explicou-me que o casamento de Xerazade com o rei decorrera em circunstâncias terríveis. O rei Xariar surpreendera a sua mulher na cama com um escravo e, profundamente magoado e enraivecido, decapitara-os a ambos. No entanto, para seu grande espanto, descobriu que o duplo assassinato não apaziguara a sua cólera. A vingança tomou-se uma obsessão para ele. Precisava de matar mais mulheres. Por isso pediu ao vizir, o oficial mais importante da sua corte, que por acaso também era o pai de Xerazade, que lhe levasse uma donzela diferente todas as noites. Desposava-as, passava a noite com elas e ao amanhecer ordenava que as executassem. E assim fez durante três anos, matando mais de mil jovens inocentes, «até que o povo levantou o seu grito irado contra ele e o amaldiçoou, pedindo a Alá que acabasse com ele e o seu reinado; as mulheres clamaram e as mães choraram e os pais fugiram com as suas filhas até que na cidade não ficou uma única pessoa jovem para a cópula carnal» [1]. Cópula carnal, explicou a minha mãe quando o primo Samir se pôs a dar saltos pedindo aos gritos uma explicação, era quando a noiva e o noivo se deitavam na mesma cama e dormiam até de manhã.

Chegou finalmente o dia em que só restavam duas donzelas na cidade: Xerazade, a filha mais velha do vizir, e a sua irmãzinha Dinazarda. Quando o vizir chegou a casa nessa noite, pálido e preocupado, Xerazade perguntou-lhe o que se passava. Contou-lhe o seu problema e ficou surpreendido com a reacção da jovem: em vez de lhe suplicar que a ajudasse a escapar, ofereceu-se imediatamente para ir passar a noite com o rei. «Desejo que me ofereçais em casamento ao rei Xariar», disse. «Viverei ou serei o resgate das donzelas muçulmanas e a causa da sua libertação das mãos dele e das tuas».

O pai de Xerazade, que a amava ternamente, opôs-se a este plano e tentou convencê-la a ajudá-lo a encontrar outra solução. Oferecê-la em casamento a Xariar era o mesmo que condená-la a uma morte certa. Mas, ao contrário de seu pai, ela estava persuadida de que tinha um poder excepcional e que conseguiria pôr fim às mortes. Curaria a alma atormentada do rei falando-lhe de coisas que haviam acontecido a outros. Levá-lo-ia a terras longínquas para que observasse costumes estranhos e tomasse uma maior consciência da sua própria estranheza interior. Ajudá-lo-ia a ver a sua própria prisão, o seu ódio obsessivo pelas mulheres. Xerazade tinha a certeza de que se conseguisse fazer com que o rei se visse a si próprio, desejaria mudar e amar mais. Finalmente o vizir acedeu contrariado e Xerazade casou-se nessa mesma noite com Xariar [2].

Ao entrar nos aposentos do rei, Xerazade começou a contar-lhe um conto maravilhoso e interrompeu-o tão habilmente na parte mais emocionante que ele não conseguiu suportar separar-se dela ao amanhecer, de forma que a deixou viver até à noite seguinte para que acabasse de o contar. Na segunda noite Xerazade contou-lhe outra história maravilhosa, mas como ao romper a aurora ainda não tinha acabado, o rei teve de lhe poupar a vida outra vez. Na terceira noite aconteceu o mesmo, e na seguinte, e assim durante mil noites, que são quase três anos, até que o rei não conseguiu imaginar a sua vida sem ela. Nessa altura já tinham dois filhos, e ao cabo de mil e uma noites o rei renunciou ao seu horrível costume de decapitar as mulheres.

– Mas como se aprende a contar histórias que agradem aos reis? – perguntei quando a minha mãe acabou de contar a história de Xerazade.

A minha mãe murmurou, como se estivesse a falar para consigo, que esse era precisamente o trabalho que ocupava as mulheres durante toda a sua vida. A resposta não me ajudou grande coisa, claro, mas depois acrescentou que a única coisa que eu precisava de saber de momento era que as minhas possibilidades de ser feliz dependeriam da minha habilidade com as palavras.

NOTAS

[1] Citação retirada da excelente tradução The Book of ïhe Thousand and One Nights, de Richard F. Burton, editado pelo Burton Club, sem data (introdução escrita em 1885), vol. I, p. 14. Mas por vezes a tradução de Burton pode ser um pouco confusa por causa da linguagem arcaica. Talvez as traduções mais recentes sejam mais simples para os leitores principiantes.

[2] Fiquei surpreendida ao aperceber-me de que muitos ocidentais consideravam Xerazade uma animadora encantadora mas simplória, alguém que narra histórias inócuas e se veste de maneira fabulosa. No nosso mundo Xerazade é vista como uma heroína corajosa e é uma das nossas raras figuras míticas femininas, uma estratega e grande pensadora que utiliza o seu conhecimento psicológico dos seres humanos para os fazer andar mais depressa e saltar mais alto. Como Aladino e Sinbad, torna-nos mais ousados, mais seguros de nós mesmos e da nossa capacidade para transformar o mundo e os seus habitantes. 

NOTAS d’O meu Baú

[1] Com esta introdução às Mil e Uma Noites pretende-se comemorar o dia dos namorados (14 de Fevereiro) de 2014 (seja lá isso o que o leitor quiser). Gostaria de lhe juntar a lindíssima suite sinfónica Xerazade, de Rimsky-Korsakov. Não o podendo fazer aqui (por razões de espaço), deixo-lhe o conselho da sua audição (se preferir, Ravel tem um conjunto de canções com o mesmo nome e o grupo REM, uma) e a promessa de voltar a ela, com um guia de audição. E votos de muitos (e felizes) amores.

[2] O presente texto (um texto de amor e de morte) é ainda contributo para um dossiê sobre o poder da(s) palavra(s), a constituir.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Scroll to Top