"12 regras para a vida"

12 Regras Para a Vida: antídoto para quê?

"12 regras para a vida : um antídoto para o caos"

12 Regras Para a Vida : um Antídoto para o Caos, um livro de Jordan B. Peterson (8ª ed. Alfragide : Lua de Papel, 2020), veio parar-me às mãos, primeiro, por os olhos o terem encontrado numa livraria em promoção (em destaque e com desconto apetecível); depois, porque, ao folheá-lo descontraidamente, topei-me com algumas referências filosóficas (verificaria, durante a posterior leitura, que sem significado relevante) e de clássicos da literatura universal, profana e sacra (mitológica e religiosa).

Chegado ao final das 487 páginas, concluo que não foram totalmente desperdiçados os euros e o tempo investidos na leitura, mas também que não teria sido significativa a perda, se lhe tivesse passado ao lado.

O mais influente e mediático pensador do mundo ocidental?

Esta apreciação, positiva mas pouco entusiasta, destoa do êxito da obra, cujas vendas se contam por milhões, e do currículo do seu autor. Li a 8ª edição portuguesa, oito edições em dois anos, de 12 Rules For Life : An Antidote to Chaos, no seu título original: foi, publicita-se na capa portuguesa, “o bestseller n.º 1 em todo o mundo”. Com esta sequela do anterior Mapas do sentido, Peterson (entre vários outros títulos, psicólogo clínico e professor catedrático de Psicologia na Universidade de Toronto) lançou mais uma pedra, ou mesmo um pedregulho, para consolidar a sua posição de ídolo da geração Y, pelo menos do sexo masculino; tem um canal do Youtube com milhões de subscritores e em escritos de várias publicações de renome é considerado “o mais influente e mediático pensador do mundo ocidental” (New York Times dixit).

Consola-me que, para invocar um exemplo caseiro, o cantor Marco Paulo – que os fãs de Peterson me perdoem a comparação! – também seja um indiscutível êxito de vendas, sem que isso seja suficiente para eu apreciar a sua música tanto quanto aprecio a sua voz. Como acontece em muitos domínios, nem o êxito das criações garante a qualidade do criador nem a escassez de êxito é sinónimo de falta de qualidade; em suma, a aceitação das massas nem sempre é critério legítimo de avaliação. Digo eu…

Dedicando um capítulo a cada regra “para a vida”, o livro tem doze capítulos; são precedidos de uma Abertura (que traça a história do livro, com raízes na rede social Quora, e do seu sucesso) e seguidos de uma Coda (uma espécie de conclusão), dos habituais agradecimentos, de treze páginas de abundantes notas (essencialmente, referências bibliográficas) e um índice remissivo de 15 páginas. Este índice parece-me exemplar: além de onomástico, é remissivo para conceitos espalhados pelas quase quinhentas páginas, com muitas listas bastante detalhadas de conceitos relacionados entre si. O melhor do livro, na minha opinião, por ser exemplar.

Sendo o seu autor psicólogo, 12 Regras Para a Vida não é um livro de Psicologia. Ainda que, aqui e além, faça apelo aos conhecimentos desta ciência (e até porque o faz de um modo tão en passant que o apelo perde importância), o que sobressai é a interpretação, diria mesmo o aproveitamento ideológico dos mesmos.

Interpretação utilizada para alicerçar posições próprias, como, por exemplo, a justificação da desigualdade social, das hierarquias de dominância (a partir da equiparação do sistema de recompensa dos nossos cérebros com o das lagostas, devido à produção de serotonina, e da transposição para os humanos da hierarquia e da agressividade daqueles crustáceos: ver capítulo 1). Ou a recusa da igualdade (da ideologia) de género: tal como não ensinamos aos nossos filhos que a Terra é redonda, aconselha Peterson, também lhes não deveríamos ensinar teorias sustentadas em ideologias e carentes de fundamento acerca da natureza dos homens e das mulheres, que seriam naturalmente diferentes. Por esta razão, a diferença salarial entre eles deve manter-se, já que ela não é mais do que o reflexo natural da diferença entre ambos os sexos.

É particularmente elucidativo o capítulo/regra 11, onde se trata especificamente da masculinidade, onde (confundindo, parece-me, o que é com o que deveria/poderia ser) se defendem os estatutos e os papéis tradicionais do homem e da mulher, do pai e da mãe; que os homens se querem (e as mulheres os querem) duros; se apresentam como naturais rituais de agressividade nos grupos masculinos; se escrevem afirmações como “Os homens precisam de endurecer. Os homens exigem isso, e as mulheres querem-no” e “Se as mulheres são saudáveis, não querem meninos. Querem homens” e “[…] se os homens são pressionados em demasia para serem mais femininos, vão ficar cada vez mais interessados em ideologias políticas duras e fascistas”.

As causas de Jordan Peterson

As ideologias totalitárias e fascistas são uma recorrência nas cinco centenas de páginas, como exemplos da direção para onde podem apontar caminhos diferentes do proposto pelas 12 regras: os “campos da morte nazis”, mas, acima de tudo, os “horrores de Estaline e Mao”, as “câmaras de tortura e o genocídio de Estaline e esse monstro ainda maior, Mao”, o “inferno da Rússia estalinista, da China de Mao e do Camboja de Pol Pot”, os “horrores da Revolução cultural e da política de filho único de Mao”, “o Holocausto e as purgas estalinistas e a catastrófica revolução de Mao”; o marxismo, “a esquerda pós-modernista” e alguns seguidores, como Sartre ou Jacques Derrida.

Porque é que Hitler e Estaline foram “dois dos piores tiranos da história”? A explicação provável, segundo Peterson, encontramo-la no mau desempenho das respetivas mães do seu “papel materno no estabelecimento da confiança”; e dos respetivos pais, que não terão “considerado devidamente” “a importância dos papéis [das esposas] e das relações com os filhos” (p. 446). O que acha o leitor de tal explicação? Simples (no mais literal e pouco positivo sentido do termo, diríamos simplista) – não lhe parece?

Mais do que na Psicologia, chamada ao efeito escassa e superficialmente, Peterson alicerça a sua teorização (não sei se lhe poderemos chamar fundamentação) nos textos clássicos, em especial os religiosos e muito em especial os bíblicos. Explicitamente ou implicitamente: o Ser, que é com frequência invocado como contraposição ao Caos e como meta que dá forma às 12 regras enquanto princípios de vida – esse Ser tem todos os ares de uma personalidade religiosa/divina, identificável no cristianismo ou no taoismo (p. 71).

Talvez por isto (as alusões ao cristianismo têm assinalável destaque, o que não admira: a psicologia da religião é um tema favorito do psicólogo canadiano) os conselhos de Peterson se aproximem tanto do discurso teológico e, em certas passagens, não andem longe dos sermões apologéticos e moralistas. Tendo isto em conta se poderá perceber também a importância que o Sermão (de Cristo) na Montanha tem nos preceitos das 12 regras; as suas [do Sermão] “eternamente confusas e brilhantes passagens” comunicariam “a ética cimeira do cânone do Ocidente” (p. 149).

Coach de vida

Feitas estas considerações, compreende-se que, no artigo de The Spectator A star is born, Douglas Murray considere que Jordan Peterson “se tornou uma mistura de filósofo, coach de vida, educador e guru. Ele tem esse tipo de paixão, jovialidade e pedagogia com que as igrejas organizadas apenas podem sonhar”.

Se lermos apenas os títulos dos 12 exercícios (que são “regras, padrões, valores”) do plano redigido pelo coach, alguns soarão bastante claros, ainda que o desenvolvimento possa trazer surpresas à clareza inicial (como o 6: Ponha a sua casa em ordem antes de criticar o mundo; ou o 4: Compare-se com aquilo que era ontem e não com o que os outros são hoje; ou o 8: Diga a verdade – ou, pelo menos, não minta); outros, adivinham-se, com maior ou menor esforço (1: Levante a Cabeça e Endireite as Costas; 5: Não deixe os seus filhos fazerem coisas que o levem a não gostar deles); e há os que não são o que parecem (12: Se vir um gato na rua, faça-lhe uma festa).

No seu conjunto, há um ponto importante para a avaliação (crítica) das regras de 12 Regras Para a Vida: quer-se que o plano de treino não seja apenas individual, mas esteja orientado a uma meta coletiva com forte conteúdo (pretensamente) ético: “redescobrir os valores da nossa cultura […] e resgatá-los, integrá-los nas nossas vidas. É isso que confere à existência o seu sentido necessário e pleno” (p. 126).

Nas prateleiras da autoajuda…

Não foi logo nas primeiras páginas (falha minha, possivelmente por falta de leituras sobre o tema) que consciencializei estar perante uma obra destinada às prateleiras da autoajuda. Todavia, quando me apercebi, persisti na leitura e levei-a até às últimas páginas, lembrado de que a fase da minha vida em que a leitura foi uma obsessão quase doentia iniciou com uma teima – conseguir ler um livro que os meus colegas de turma tentavam ler, mas de que desistiam: Grandes Esperanças de Charles Dickens.

Pelo que já deixei escrito, adivinha-se que o efeito produzido por Peterson (mesmo ignorando os clichés da autoajuda, mesmo admitindo como positivos o relevo do conceito de autoestima que percorre todas as páginas e que as suas teorias tenham algum apoio em estudos de antropologia e de política e em um ou outro filósofo e na história das ideias), o efeito nem imitação é do provocado por Dickens.

No entanto, autoespicaçou-me para um treino que, há muito, andava a pensar levar a cabo com empenho. Tenho um ritmo de leitura excessivamente lento, talvez por “deformação” das leituras de obras de não ficção, que prefiro; 12 Regras Para a Vida deu-me a oportunidade ótima para vencer a tendenciazinha para a procrastinação e autoajudou-me a exercitar a ultrapassagem deste meu jeito de ler um romance (ou até um livro “ligeiro”) a uma velocidade pouco superior à de um livro de filosofia ou de ciência. E posso garantir que foi com algum êxito que apliquei técnicas de leitura rápida – outra justificação para não lamentar totalmente o investimento que fiz em 12 Regras Para a Vida.

Professor, psicólogo e filósofo?

No respetivo canal do Youtube, Peterson apresenta-se como Professor, Psicólogo e Filósofo…. “explorando a natureza da verdade”. Não consigo ter opinião sobre as outras duas ocupações, mas espero que o seu nível em ambas esteja acima do filosófico. Baseio a minha opinião exclusivamente em 12 Regras Para a Vida e garanto que esta opinião é independente do meu desacordo em relação a algumas das suas ideias: é muito difícil que qualquer leitor possa concordar com todas as teorias sobre temas tão variados, apesar de algumas me parecerem excessivamente “duras de roer” (por exemplo, aquele conselho de que deveremos deixar para trás as pessoas que não podemos puxar para a frente) e a solução apresentada para situações complexas ser, por vezes, demasiado simplista.

O que me parece pouco filosófico é a argumentação a partir das histórias e mitologias religiosas (como disse, especialmente da Bíblia) ou de filmes da Disney ou clássicos da literatura – recursos assumidos como depósitos da verdade, onde naturalmente se deveria procurar. A própria interpretação das histórias bíblicas é isso mesmo: interpretações pessoais, que, além do mais, nem sempre são pacíficas ou então roçam a simplicidade.

Confesso que houve passagens de 12 Regras Para a Vida que me surpreenderam pelas relações criativamente estabelecidas entre ideias muito diversas ou pela estranheza de uma ou outra teoria (por exemplo, a explicação do motivo para na China e na Índia se preferirem os filhos varões às raparigas: …para haver uma descendência mais numerosa). Confesso que aprecio, de um modo geral, a interpretação dos textos fundamentais da nossa cultura mítico-religiosa e a ligação dos mesmos com a atualidade, incluindo para estabelecimento de normas de vida.

Contudo, não considero que, por mais interesse que tenha, essa seja rigorosamente uma tarefa filosófica. Está aqui em questão o problema do valor filosófico da autoridade: penso que os antes enunciados fundamentos de 12 Regras Para a Vida não têm estatuto que justifique valor superior, ou até igual, ao dos grandes autores da história da Filosofia, não devendo ter uma função que ultrapasse o limite da mera ilustração, jamais fundamentação absoluta, de ideias.

Os axiomas de que temos uma natureza (p. 126) (e a dura crítica, que daí decorre, a quem desnaturaliza uma presumivelmente natural ordem humana e a quem nega a natural superioridade de algumas pessoas – e ignoro aqui os violentos movimentos históricos com raízes nestas ideias), bem como o axioma de que nas fontes a que Peterson recorre está guardada a verdade sobre essa natureza – estes parecem-me os pontos mais débeis, sobretudo porque indemonstrados, da obra do psicólogo canadiano.

O diálogo com ela não constituiu um estímulo intelectual por aí além, embora compreenda que tem os ingredientes para ser um bestseller; desde o afirmar-se contra o chamado politicamente correto até às “histórias de vida” e às histórias de sexo e poder pretensamente apoiadas na sabedoria religiosa tradicional, passando pela habilidade em as contar e por um discurso bem estruturado cheio de referências cultas – eis alguns impulsionadores de vendas.

Não foi o caráter conservador da obra (partilho com ela, por exemplo, algumas reservas em relação a exigências do movimento identitário), não foi esse caráter que me criou impressão menos positiva (mas é de realçar, ainda assim, a consequente pouca tolerância de algumas teses, a nível sócio-cultural; no já citado capítulo 11, é normalizada a violência dentro de grupos de trabalho masculinos, entendida como um teste:”és durão, divertido, competente e confiável? Se não, vai-te embora. Simples. Não precisamos de sentir pena de ti”); foi sobretudo a fragilidade, a pouca solidez, da justificação das ideias, da “argumentação”.

À margem de 12 Regras Para a Vida

Fora das páginas de 12 Regras Para a Vida, confirmamos essa fragilidade ao ouvir/ler entrevistas do autor, vídeos seus do Youtube: não é difícil encontrar aí “explicações” tão genéricas e tão subjetivas como a proposta, e acima referida, para as tiranias de Hitler e Estaline.

De modo semelhante, Peterson coloca a hipótese de “a confusão relacionada com o género” resultar de os “confusos” defensores terem brincado pouco ao ‘faz de conta’ quando eram crianças. De modo semelhante, o assédio sexual é “justificado” com o aparecimento da pílula nos anos 60 e a consequente indefinição da fronteira entre o assédio e o convite: “é normal” que, nestas circunstâncias, os homens cometam erros no âmbito das relações sexuais, estando grande parte da responsabilidade do lado das mulheres, que rejeitam a maior parte dos convites sexuais dos homens; o problema estaria também do lado dos “pós-modernistas” que enchem as escolas de Direito, que valorizam a consequência do ato e não a intenção do mesmo.

O debate do século?

A “argumentação” de Peterson descamba facilmente para a vagueza e a afirmação “gratuita”. Encontramos uma ilustração desta fragilidade no “debate do século” entre ele e Slavoj Zizek. Não me pronunciando sobre o debate, destaco só dois ou três pontos que podem interessar para o presente propósito.

Estava decidido que o pontapé de partida seria uma exposição de Peterson sobre o tema Felicidade: Marxismo VS Capitalismo. Em lugar de se lançar à obra (…vasta!) do seu adversário, o psicólogo canadiano desculpou-se explicando que não lhe fora dado o tempo suficiente para se preparar e optou por atirar ao lado… uma seta fácil: reler a origem de todos os nossos males – o (brevíssimo) Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels. E, no essencial, ataca Marx repetindo os seus axiomas: em vez de se socorrer da história das sociedades humanas, Marx (que “não tem em conta a natureza”) deveria ter estudado a nossa “biologia”, onde estão incrustados os nossos reflexos hierárquicos.

Quando, avançado o debate, Zizek lhe pede um nome dos pós-modernistas neomarxistas igualitaristas de que ele fala, na resposta de Peterson, atirando de novo e sintomaticamente ao lado, transparece a mesma fraqueza anterior: os estudos mostram que 25% dos pesquisadores em ciências sociais se identificam como marxistas. E não adianta Zizek insistir no pedido de um nome; do outro lado, o tipo de resposta repete-se: o pós-modernismo substituiu a opressão do proletariado do marxismo pela opressão identitária. Zizek acerta no ponto: mas essa é precisamente uma aproximação não marxista. Peterson tenta dois nomes franceses, dos anos 60: Derrida e Foucault. Nova seta de Zizek: de facto, Foucault sempre foi considerado um inimigo pelos marxistas.

Não sei se foi o debate do século ou um dececionante duelo cómico, vestindo ambas as personagens as vestes do anti-politicamente-correto. Mas, no que toca a Peterson, manifesta-lhe as fragilidades que encontrei em 12 Regras Para a Vida, com destaque para o simplismo oculto em interpretações e explicações aparentemente profundas. Fico com a sensação de, por exemplo no que toca ao marxismo, ficar pelas generalidades repetidas por quem nunca leu uma linha de Marx.

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