Brincadeira tem limites?

Parece que sim, que a brincadeira tem limites, parece haver assuntos com os quais não se deve brincar. A religião é um deles. Deus, Papa, santos… O povo, que sabe tudo ou mesmo que não saiba, é o povo quem avisa: muitas graças a Deus e poucas graças com Deus. De Deus temos a imagem de alguém sério, terrível a castigar. Refiro-me ao Deus da Bíblia (que é o Deus que conheço menos mal); ao pai, o velhote de barbas de A criação de Adão de Miguel Ângelo (1475-1564). Sempre que vejo a imagem que fica no teto da Capela Sistina, lembro-me do Poema do Menino Jesus,  de Fernando Pessoa, que narra a fuga de Jesus Cristo,

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar.

Um menino que fugiu do céu

A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Os evangelhos referem (pelo menos, umas três vezes) que Jesus Cristo chorou; mas não me recordo de alguma referência a risos seus. E, no entanto, uma leitura mais atenta poderá sugerir-nos alguém que não deveria ser tão sério como o pai. Lembram-se daquele milagre de transformar água em vinho (e, recorde-se, vinho de grande categoria) numa boda a correr mal por falta de bebida? Adivinha-se aqui alguém que, ao contrário do primo João, come e bebe tanto que lhe chamam de “comilão e beberrão”: é o que se lê em uma passagem do Evangelho segundo Mateus. Além disso, é “amigo dos publicanos e pecadores”. E nalgumas parábolas é até engraçadinho. Então e aquela da mulher adúltera, que os escribas e fariseus (os grandes de então) querem que seja apedrejada?! quando tentam entalar Cristo perguntando a sua opinião, ele responde… escrevendo com o dedo na terra. Brincalhão, não acham? Muito mais brincalhão do que aquelas figuras quase sinistras, ou mesmo sinistras, que por aí povoam os templos. Eu acho piada à ideia de que, se Deus não tivesse sentido de humor, não aguentaria os seres humanos; ou ao trocadilho com a repetida frase “Deus é amor”, transformada em “Deus é humor”.

Há quem pareça não ver limites à brincadeira

Não falta quem “se corte”, no momento de fazer humor com determinados assuntos. Não é o caso de Žižek (1949). Sociólogo, psicanalista, crítico cultural esloveno, é considerado “o filósofo mais perigoso do Ocidente, mas também o mais divertido”. O livro traduzido para espanhol com o título Mis chistes, mi filosofía (As minhas anedotas, a minha filosofia) reúne 107 anedotas espalhadas pelas suas obras, num volume que, lê-se no prefácio, parece dar razão à frase de Wittgenstein (1889-1951): “Uma obra filosófica séria deveria ser composta inteiramente por anedotas”. Anedotas “puxadinhas” sobre o socialismo e o capitalismo, o feminismo, a prostituição, o adultério, as relações sexuais de personalidades conhecidas (e intocáveis), o Papa, sexo no Paraíso, a religião (“numa perspetiva teológica, Deus é o brincalhão supremo”, jura Žižek). Como aquela que ele classifica como “uma anedota agradavelmente vulgar acerca de Cristo”: na noite anterior a Cristo ser crucificado, os seus seguidores começam a preocupar-se com o facto de ele ir morrer virgem; por isso, pedem a Maria Madalena que vá à tenda onde ele se encontra e o seduza; ela entra na tenda, mas sai, passados cinco minutos, aos gritos e furiosa (não vou contar o resto, para não correr o risco de perder todos os meus leitores).

Brincadeira tem limites?

Há gracinhas que uns consideram inofensivas e outros, inaceitáveis. Porquê? Uma das razões: depende de que lado está quem as conta e quem as ouve. Seja uma anedota sobre o holocausto: conte-a uma vítima do holocausto e será muito diferente de ser contada por um nazi. Qualquer tipo de humor é uma espécie de pacto entre o cómico e o ouvinte: como no sadomasoquismo, ambas as partes combinam o jogo, ou ambas o jogam ou não haverá jogo. Querem mais um exemplo? Seja a história das reações às caricaturas de Maomé: de um lado, a aceitação ou os risinhos dos defensores da liberdade de expressão; do outro, os protestos de embaixadores de países muçulmanos, as manifestações de milhares de pessoas, as múltiplas ameaças de morte, os atentados com mortos e feridos… Entre nós, lembram-se daquele cartoon do grande António, no Expresso, em que o papa João Paulo II surge com um preservativo no nariz (para criticar a interdição papal do preservativo, apesar da propagação da SIDA)? Houve quem lhe chamasse “o desenho aporcalhado”; um abaixo-assinado de 20 mil assinaturas solicitou à Assembleia da República a discussão da “execrável caricatura”, “que ofende gratuitamente e grosseiramente” e apresentou queixa à Alta Autoridade para a Comunicação Social; as opiniões dividiram-se entre a defesa do direito à livre expressão e criação e a condenação da “mão maligna” do caricaturista, que voltaria ao ataque com outra crítica no mesmo estilo a Bento XVI.

Passa-se algo idêntico na política. Erika Riemann, uma rapariga de 14 anos, foi prisioneira política nos gulags da Alemanha de leste devido a uma brincadeira infantil: desenhou um lacinho no bigode de Estaline.

Coisas do ex-leste? A Audiencia Nacional espanhola condenou Cassandra Vera a um ano de prisão, por recentemente ter feito humor no Twitter sobre Carrero Blanco, mão direita e ministro de Franco. Ainda que o Supremo a tenha depois absolvido, o caso é tão exemplar como, em Portugal, a tempestade provocada pelo programa televisivo Humor de Perdição de Herman José e as “Entrevistas Históricas”, que parodiavam as maiores figuras da História de Portugal, como D. Afonso Henriques e Florbela Espanca, com um humor non-sense puro e duro. Na altura, ouviram-se críticas das mais altas referências políticas do país e o programa viria a ser suspenso – catorze anos após o 25 de abril…

Tal como na religião, também na política uma anedota (sobre uma personalidade partidária) pode ser “vista” de modo diferente conforme seja contada (ou seja ouvida) por um seu simpatizante ou por um opositor. Rir-se de algo ou alguém é muito diferente de rir-se contra algo ou alguém. As “melhores” gracinhas sobre Sá Carneiro, aquando da sua morte após se ter despenhado o avião em que seguia (1980), contou-mas uma incondicional do primeiro-ministro, uma minha amiga que foi ao funeral e chorou a sua morte “mais do que se fosse a de um familiar”. À Isabel ouvi, a primeira vez, um jogo brincalhão com o apelido Carneiro, uma brincadeira que se tornaria “clássica”: quando Eanes chegou ao local da tragédia, um bombeiro perguntou-lhe: “Senhor presidente, gosta assim ou quer mais passado?”. Com piada ou piada de mau gosto?

Será por isto que todos aceitamos o humor que atinge “o inimigo comum”, aquilo que nos chateia a todos, como as multas, os impostos?

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O contexto é outra limitação do humor; piadas contadas fora de sítio acabaram com carreiras de políticos. Lembram-se daquela do ministro Carlos Borrego, contada durante uma visita a Braga? Vivia-se o “caso do alumínio” que provocou 25 mortes na Unidade de Hemodiálise do Hospital de Évora, abastecido com água contaminada com excesso de alumínio. Borrego gracejou: “Sabem o que é que no Alentejo – em Évora melhor dizendo – fizeram aos cadáveres das pessoas que morreram ultimamente? Levaram-nos para reciclar, para aproveitar o alumínio”. Convenhamos que não foi o melhor sítio nem ocasião para um ministro brincar com a desgraça alheia.

Não há espaço para desenvolver esta ideia, com que concluo — o humor é ficção; talvez por isso o verdadeiro (único?) limite para o humor seja este: não fazer humor com aquilo que não é ficção.

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||| Este texto…

… é o quarto da série O Humor é coisa séria. O terceiro [A utilidade inútil da filosofia] está aqui. O quinto [Humor nacional] está aqui.

… foi também publicado no Caderno de Artes & Letras Cultura.Sul, do jornal algarvio Postal.

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