Carnaval escatológico

  1. Escatologia é um termo ambíguo. Pode significar o estudo do que há de acontecer depois do fim do mundo. Pode ser ainda a utilização de expressões relacionadas com fezes ou obscenidades. É neste segundo sentido que podemos dizer que o Carnaval é, por natureza, escatológico. E, porque é Carnaval, não me levem a mal (as minhas… escatologias seguintes).
  2. Passos Coelho “proibiu” o Carnaval. Nos anos 90, um correligionário seu fez o mesmo

    [e saiu-lhe o tiro pela culatra — ou, traduzido para o escatológico carnavalês, bateu-lhe o peido nas ventas].

    Estamos governados pelos sacerdotes do sacrifício, da luta contra a folia, contra a folgazarra: “é do trabalho que vem tudo”.

  3. Em 2009, os acólitos de tais sacerdotes proibiram sátiras carnavalescas ao Magalhães

    [foi há pouco: lembram-se?]

    O Carnaval é, por natureza, perigoso. Porque estruturalmente violento. Porque ninguém leva a mal – ninguém, se excetuarmos os tais sacerdotes e seus acólitos.

  4. O Carnaval é, além disso e medievalmente, mal-criado. Mal-criado nos cheiros: diga-o a população escolar que tem de tapar o nariz contra bombinhas pestilentas. Mal-criado na linguagem: ouça-se, por este país fora, a leitura dos Testamentos da Comadre e do Compadre. Só para dar um exemplo: aplaudidos pela assistência que os ouve, em Lazarim, reza assim o compadre:

    Tende cuidado com o burro / Que ele é abonado / Se a dele não chegar / Tendes aqui mais um bocado”.

    E a comadre:

    Sois todos uns paneleiros / que não valem dois vinténs / Ninguém quer de vós saber / Até vos mijam os cães”.

  5. As ventosidades do cagão e peidorrento Carnaval  são, desde há muitas eras, sopro de vida. O Génesis revela que Deus criou o Homem inspirando-lhe o sopro da vida. Textos medievais contam estórias de camponeses nascidos de um peido, possivelmente do de um burro; de mortes provocadas por um descuido intestinal… Tudo coisa nobre – de nobreza tamanha que justifica a sua presença na obra de Dante. No seu Inferno, peida-se a diabretada toda, incluindo o chefe, que se serve “do seu traseiro à guisa de trombeta”.
  6. Para os tais sacerdotes, tudo isto é porco, tudo isto é badalhoco. E pode desaguar nos excessos defendidos por uma belíssima composição de Juan del Encina, trovador do século 15. Deixo a música e, do texto, duas variações do refrão:

    Oy comamos y bebamos / cantemos y holguemos / que mañana ayunaremos. […] Comamos, bebamos tanto, hasta que nos reventemos, / que mañana ayunaremos”.

  7. O que os tais sacerdotes sabem é que nós sabemos que eles se peidam e se cagam como nós

    (mas proíbem que o digamos).

    Não me levem a mal, que a tese não é minha – é dos, nalgumas passagens, pouco poéticos Ensaios de Montaigne. Cito-os:

    Os reis e os filósofos cagam, e as damas também”; “mesmo no mais elevado trono do mundo estamos sempre sentados sobre o nosso cu”.

    Terão os tais sacerdotes medo de levar com as ventosidades nas ventas?

[Nb: Com as devidas adaptações para impressão em papel, este texto foi escrito para um semanário viseense, onde… não foi publicado.]


||| Pode interessar-lhe também o artigo Carnaval musical: desde o “Canto Carnavalesco” do Renascimento florentino até composições recentes, são muitas as obras que ao longo dos séculos receberam a poderosa influência da festa das máscaras. Visitamos algumas.

1 thought on “Carnaval escatológico”

  1. Um texto interessante sobre as origens (incluindo a etimológica) e a evolução do Carnaval, na Wikipédia. Cito apenas isto:

    “O carnaval da Antiguidade era marcado por grandes festas, onde se comia, bebia e participava de alegres celebrações e busca incessante dos prazeres. O Carnaval prolongava-se por sete dias na ruas, praças e casas da Antiga Roma, de 17 a 23 de dezembro. Todas as actividades e negócios eram suspensos neste período, os escravos ganhavam liberdade temporária para fazer o que em quisessem e as restrições morais eram relaxadas. As pessoas trocavam presentes, um rei era eleito por brincadeira e comandava o cortejo pelas ruas (Saturnalicius princeps) e as tradicionais fitas de lã que amarravam aos pés da estátua do deus Saturno eram retiradas, como se a cidade o convidasse para participar da folia.”

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