A criadinha que se ri do filósofo

Tales de Mileto
Tales de Mileto

Correm por aí ideias diversas sobre os filósofos, mas há algumas constantes: que o filósofo é um ser estranho que anda nas nuvens, desenraizado dos problemas do quotidiano da “arraia miúda” – esta, uma imagem bem antiga contida numa estória que Platão coloca em boca de Sócrates, no diálogo platónico Teeteto,

[PLATÃO. Teeteto – Crátilo. In: Diálogos de Platão. Tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 3a. ed., Belém: Universidade Federal do Pará, 2001]

e envolve a famosa criada trácia que se ri de Tales de Mileto.

Em diálogo com Teodoro, o mestre de Platão diz dos filósofos que, tanto “como quanta areia há no mar”,  eles ignoram “o caminho da ágora ou onde fica o tribunal, a sala de conselho e quejandos, locais de reuniões públicas; não ouvem nem vêem as leis nem as decisões escritas ou faladas. As disputas dos cargos públicos nas hetérias, as reuniões e os festins, os banquetes animados por tocadoras de flauta: nem em sonhos lhes ocorre comparecer a nada disso”; se nasceu “na cidade alguém de nobre ou baixa estirpe”, se certo “cidadão herdou tara de seus antepassados, homens ou mulheres”. Mais: nem sequer “chega mesmo a saber que não sabe nada disso”. E a razão por que “se alheia dessas coisas” não é a “vanglória, mas porque realmente só de corpo está presente na cidade em que habita, enquanto o pensamento, considerando inane e sem valor todas as coisas merecedoras apenas de desdém, paira por cima de tudo, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a sua superfície, contemplando os astros para além do céu, a perscrutar a natureza em universal e cada a ser em sua totalidade, sem jamais descer a ocupar-se com o que se passa ao seu lado”.

A seguir, vem a tal estória:

Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não via o que estava junto dos próprios pés.

“Essa pilhéria”, continua Sócrates, “se aplica a todos os que vivem para a filosofia. Realmente, um indivíduo assim alheia-se por completo até dos vizinhos mais chegados e desconhece não somente o que eles fazem como até mesmo se se trata de homens ou de criaturas de espécie diferente. Mas o que seja o homem e o que, por natureza, lhe cumpre fazer ou suportar, para distingui-lo dos outros seres, eis o que ele procura conhecer, sem se poupar a esforços em sua investigação”.

E, logo depois:

Eis a razão, amigo, como disse no começo, de em todas as circunstâncias, assim na vida pública como no trato particular com seus concidadãos, no tribunal ou alhures, sempre que nosso filósofo é forçado a tratar de assuntos que lhe caem sob a vista ou diante dos pés, tornar-se alvo de galhofa não apenas por parte das raparigas da Trácia como de todo o povo, levando-o sua falta de experiência a cair nos poços e na mais triste confusão. Sua irremediável inabilidade para as coisas práticas fá-lo passar por imbecil.

[imagem rapinada daqui]

*****

Marx escreveu, quando jovem, que até hoje, os filósofos apenas interpretaram o mundo de maneiras diferentes, mas o que importa é transformá-lo. Coincidirá esta imagem com a da “criada da Trácia” e “de todo o povo”?

O que pensa o leitor sobre o assunto?

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