Nietzsche, um filósofo atual

De onde vem a curiosidade que Nietzsche continua a despertar?

Um dos aspetos a que corresponde tal interesse resulta, seguramente, do facto de Nietzsche ser, ainda hoje, uma opção contra a cultura (fundamentalmente a Ocidental), contra a ciência e o progresso. O nosso tempo, tempo de ceticismo face aos logros da ciência e da racionalidade

[atualmente temos de reconhecer que a civilização industrial, técnica e científica cria tantos problemas como os que resolve [Edgar Morin, In Label Franco, n.° 28 de 7/97)],

é também tempo de desencanto generalizado, configurando, de algum modo, os sintomas não só do fim do século mas também do fim do milénio: vivemos à superfície, sem raízes nem sonhos, e, assim, a figura de Nietzsche aparece consubstanciando a mais eficaz crítica ao cristianismo e à metafísica de pendor platónico que deram lugar à decadência atual.

Nietzsche

Nietzsche não se posiciona apenas como um crítico profundo, mas também como o portador de propostas relacionadas com a moral e com a compreensão do mundo. Assumiu uma posição crítica face ao estado atual das coisas legando-nos a possibilidade de compreender e compreender-se no mundo de forma radicalmente distinta. Em torno de quatro vetores se estabelece o essencial do pensamento nietzschiano: a morte de Deus, a Vontade de Poder, o Eterno-Retorno e o Super-Homem.

  1. A morte de Deus assume-se como o ponto de partida para o desenvolvimento das linhas gerais do seu pensamento, dado que implica um diagnóstico da cultura, da moral e do pensamento posterior ao iluminismo, e de como é precisamente o iluminismo a marca fundamental da morte de Deus

    [Kant: o que podemos saber/conhecer? Cf. Kant, Crítica da Razão Pura].

    A ausência de fundamento e sentido que implica a morte de Deus induz-nos a procurar outras “explicações”, outros sentidos, outros fundamentos do mundo e do homem que não envolvam já o âmbito do divino, pelo menos no sentido monoteísta restrito. Coloca-se então a necessidade de abandonar a compreensão do mundo e da moral tradicional, unificadores desse mesmo mundo, para inserir-se na existência, na “realidade”, captando a sua riqueza, multiplicidade e complexidade. Trata-se de chegar às últimas consequências do facto de que Deus morreu, e encontrar assim um maior impulso vital, força, poder e liberdade, que só o conhecimento trágico nos pode devolver.

  2. A vontade de poder, simulacro onde se fundamenta toda a existência, é também o princípio de um novo pensar e de uma nova moral; “verdade é o que aumenta o sentimento da força”. O ponto de partida deste simulacro reside na crítica à moral cristã e à sua apologia da debilidade, da fraqueza e do sacrifício (sofrimento) para alcançar o Paraíso (a eternidade), numa vida depois da morte. Em Nietzsche afirma-se a imanência capaz de estabelecer uma força que origina a totalidade do real dentro de si mesma. Esta força nascente é então a vontade de poder.
  3. A compreensão da temporalidade encontra-se na ideia de eterno-retorno enquanto tarefa para abandonar a temporalidade entendida como progresso, própria da modernidade e do cristianismo

    [Conceção linear, diferente da conceção cíclica – característica de todo o desenvolvimento da cultura clássica, expressa por Heráclito: «tudo muda, nada desaparece» (Met, XV, 165)].

    Trata-se para além de mais de reivindicar o instante, convertendo-o em eterno, evitando estabelecer com ele uma eternidade para além do instante, i. é, para além deste mundo. «A vida humana seria então, um elo numa cadeia de formas mutáveis, e o seu sentido situar-se-ia na tomada de consciência do seu lugar nesse conjunto, ao mesmo tempo fugaz e permanente”

    [Cf. José Jiménez, A vida com acaso, p. 193, Ed. Vega].

  4. A problemática do super-homem enquadra-se dentro do espírito da prestigiosa política, cujo significado remete, no sentido da preparação do mundo, para o advento do super-homem. O super-homem não é mais do que a grande obra de arte dos filósofos-artistas (ver a ciência sob a ótica do artista, a arte porém sob a da vida…)

    [cf. Nietzsche, Ensaio de autocrítica (cp. 2), In A Origem da Tragédia],

    grandes herdeiros alegres da morte de Deus, aqueles que se atrevem a chegar até às últimas consequências dessa consumação. Super-homens: seres livres, que criam valores e formas de vida porque têm em si a força, a lucidez e a nobreza cujo princípio não é o “Tu Deves”, nem o “Eu Quero”, mas sim o “Eu Sou” dos deuses gregos

    [cf. as três transformações do espírito: metamorfoses do camelo, do leão e da criança].

    O fundamento é então a autoafirmação, a exacerbação da própria existência; proclamando aos quatro ventos “Eu Sou” e “Eu sou o que quero”. A partir do super-homem não haverá mais metas senão a de viver segundo o caos das forças que eternamente regressam a si mesmas, encontrando a “finalidade sem fim”. É necessário que o super-homem seja dotado de uma consciência heroica como a que existiu na antiguidade grega, quando a força e a honra eram as virtudes morais da época, consubstanciadas nos heróis trágicos de Ésquilo e Sófocles.

[escrito por J.Costa. Viseu, Junho, 1999]

Bibliografia:

Fink, E. – Nietzsche, Ed. Presença
Jiménez, J. – A vida como Acaso, Ed. Vega, Lisboa, 1997
Nietzsche – O Nascimento da Tragédia, Ed. Relógio D’água
Nietzsche – Assim falava Zaratustra, Ed. Europa América
Nietzsche – A Retórica, pref. de Tito Cardoso e Cunha, Ed. Vega, 2ª ed.
Savater, F. – Nietzsche, ATC-UNAM, México, 1993

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Scroll to Top