A primeira fase do exame nacional de filosofia 2019 realizou-se a 17 de junho.
Em formato pdf, podem ser descarregados
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- a prova da 2ª fase será a 22/7.
- O meu Baú tem duas secções de apoio (com textos, testes,…) ao ensino da filosofia: ao 10º ano e ao 11º ano.
- Veja outros exames de Filosofia.
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COMENTÁRIOS de Pedro Galvão (PG), professor de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, aos critérios oficiais de classificação:
- Começando pelas questões de escolha múltipla, que na sua totalidade valem nada menos que uns exagerados 8 valores… Em duas das dez, encontrei problemas: numa boa questão de escolha múltipla, uma e só uma opção deve ser inequivocamente verdadeira, e as outras opções devem ser todas inequivocamente falsas; isso não acontece em dois casos.
- Eis o primeiro (I, 1 da versão 1):Considere as afirmações seguintes.
1. As pessoas que não ponderam as consequências dos seus atos não merecem ter liberdade.
2. Nas democracias, os cidadãos têm mais liberdades do que nos outros regimes políticos.
(A) Nenhuma das afirmações é relevante para a discussão do problema do livre-arbítrio.
(B) Ambas as afirmações são relevantes para a discussão do problema do livre-arbítrio.
(C) Apenas a afirmação 1 é relevante para a discussão do problema do livre-arbítrio.
(D) Apenas a afirmação 2 é relevante para a discussão do problema do livre-arbítrio.De acordo com o IAVE, A é a opção correcta. Pois bem, eu escolheria C… É verdade que a liberdade referida em 1 não é o livre-arbítrio, mas a liberdade política ou algo do género. No entanto, 1 inclui também o conceito de mérito, e este tem conexões fortes com a discussão do livre-arbítrio. Uma posição comum é esta:
– Os agentes têm mérito ou demérito (merecem coisas boas ou más) se e só se têm livre-arbítrio.
A esta luz, poder-se-á argumentar que, como A é verdadeira, as pessoas em causa têm livre-arbítrio. Ou que, como as pessoas não têm livre-arbítrio, A é falsa. A afirmação A tem, pois, relevância para a discussão do livre-arbítrio.Nota: Parfit defende que, como nós não temos o livre-arbítrio dos libertistas, nenhum de nós merece sofrer (ou que coisas más, como a privação da liberdade, o aprisionamento, nos aconteçam.)
- E agora a outra questão de escolha múltipla bem problemática (I, 8 da versão 1)
Imagine que submetia as suas opiniões ao teste da dúvida proposto por Descartes. Qual das opiniões seguintes seria a mais resistente à suspeita de falsidade?
(A) Existem outras pessoas no mundo.
(B) Neste momento, ouço uma voz grave.
(C) Neste momento, não estou a sonhar.
(D) Dois vezes seis é igual a treze menos um.De acordo com o IAVE, a resposta correcta é D. Contudo, parece-me que não seria disparatado escolher B…
Descartes não consideraria D absolutamente indubitável, visto que (insensatamente) declarou que o génio maligno poderia iludi-lo até quanto ao valor de verdade de afirmações matemáticas muito simples.
E B? Aí as coisas complicam-se… Se B for entendida como “Neste momento, tenho sensações auditivas de voz grave”, então será indubitável pelos padrões de Descartes. E não é irrazoável entender B assim.
- II, 1: O Carlos encontrou a Diana numa esplanada sobre o rio Guadiana. A Diana disse-lhe:
‒ Gosto de rios, mas também gosto de lagos rodeados de montanhas.
O Carlos acrescentou:
‒ Nesse caso, gostas de alguns lagos suíços, pois na Suíça há lagos rodeados de montanhas.
Qual dos dois tipos de argumentos – dedutivo ou não dedutivo – usou o Carlos para concluir que a Diana gosta de alguns lagos suíços? JustifiquePG: De acordo com os critérios de correcção, a resposta correcta é: DEDUTIVO. Mas a resposta correta é: PÁ, DEPENDE. É que há duas interpretações razoáveis de “Diana gosta de lagos rodeados de montanhas”. Uma interpretação: “Diana gosta de todos os lagos rodeados de montanhas”. Outra interpretação, sem universalidade: “De um modo geral, Diana gosta de lagos rodeados de montanhas”. Com a segunda interpretação, não se obtém um argumento dedutivo. [Faça-se já uma petição para me proibirem de ensinar Lógica!]
- III, 2: Suponha que a sociedade dispõe de uma quantia destinada a financiar a preparação de dois atletas para os jogos olímpicos. Os dois atletas têm o mesmo nível de talento e de capacidades e a mesma motivação para as usar. De acordo com a teoria da justiça de Rawls, estes atletas devem ter a mesma expectativa de sucesso, independentemente da classe social de origem. Por isso, a quantia destinada a financiar a preparação de ambos para os jogos olímpicos deve ser dividida pelos dois em partes iguais.
Identifique o princípio de justiça, proposto por Rawls, em nome do qual a solução apresentada é a correta.PG: Aqui a minha reserva é esta: os princípios da justiça rawlsianos são para definir a estrutura básica da sociedade. O seu propósito não é alocar verbas para dois atletas… A grande crítica neomarxista de G. A. Cohen a Rawls é precisamente esta: os princípios da justiça não devem ser só para definir a estrutura básica da sociedade. [Mas faça-se uma petição para me proibirem de ensinar Filosofia Política!]
- IV, 1: O facto de termos justificação para uma crença faz dela conhecimento? Porquê? Ilustre a sua resposta com um exemplo adequado.
PG: De acordo com os critérios de correção, a resposta inequivocamente correta é NÃO: “a justificação de uma proposição/tese/teoria/crença apenas fornece razões para se acreditar nela, mas não determina a sua verdade, ou seja, essa proposição/tese/teoria/crença pode ser falsa, não constituindo, nesse caso, conhecimento”. Eu concordo… Mas esta posição não é inequivocamente correta. Se o aluno for infalibilista quanto à justificação, dirá que crença justificada implica verdade e, assim, que crença justificada implica conhecimento. Ou seja, uma questão aberta ficou fechada pelos critérios de correção. [Faça-se já uma petição para me proibirem de ensinar Epistemologia!]
- IV, 2: Será que tanto Descartes como Hume contribuíram para a «crescente desconfiança» [a respeito da possibilidade de, através do pensamento puro, descobrirmos algo acerca do mundo objetivo]?
PG: A resposta é SIM: o malogro do ambicioso projeto cartesiano contribuiu para a desconfiança em causa. No entanto, de acordo com os critérios de correção, a resposta verdadeira é: Descartes NÃO, mas Hume SIM. [Faça-se já uma petição para me proibirem de voltar a ensinar Filosofia Moderna!]
Não concordo com a objeção do Pedro Galvão à I.1.
A questão do merecimento é um problema de ética; a questão do livre arbítrio é um problema (diria) metafísico; devem ser investigados separadamente, até porque, como sabemos, a discussão do mérito sai de cena se o determinismo radical for verdadeiro e a mesma discussão é particularmente relevante no cenário do determinismo moderado. Logo, apure-se primeiramente se há livre arbítrio.
É verdade que tenho visto amplamente difundido como contra-argumento ao determinismo radical o facto de nessas circunstâncias não haver responsabilidade moral. Porém, não compreendo isso. A realidade não muda pelo facto de nós ficarmos numa situação preocupante ao não podermos atribuir responsabilidade moral.
Concluindo, concordo com a opção do IAVE porque: 1) os problemas «há livre arbítrio?» e «há mérito do sujeito?» devem ser separados; 2) seguidamente deve responder-se ao 1º, sem preocupação com as consequências que isso tem sobre a atribuição de mérito ou demérito aos sujeitos; 3) logo, a afirmação 1. não é relevante para a discussão do problema do livre-arbítrio.