O cérebro constrói a realidade

A brasileira Kia Nobre é catedrática de neurociência na Universidade de Oxford. É uma das poucas cientistas que dedica praticamente todo o seu tempo a analisar e a medir o funcionamento do cérebro, recorrendo aos métodos não invasivos como as imagens cerebrais por ressonância magnética ou as magnetoencefalografias.

O número 29 da revista espanhola Redes para la ciencia publica uma entrevista que lhe foi feita por Eduard Punset. O vídeo seguinte tem por base essa entrevista:

 

Segundo Kia Nobre, a perceção e as ações “acontecem mais rapidamente que uma olhadela para o relógio, numa escala de centenas de milissegundos, em menos de um segundo…”. Acrescenta que “a conceção do tempo é um eixo fundamental para nos ajudar a organizar e ordenar os nossos pensamentos e o nosso comportamento. O nosso cérebro não é um simples recetáculo que armazena coisas e ordena toda a informação que lhe chega; ao contrário, não para de fazer previsões, projeções, e fá-lo ao dar expectativas do que é importante para nós como a identidade, o lugar onde estas se cumprirão ou ainda a temporização. A nossa atividade cerebral, desde os primeiros sistemas existentes, muda a sua excitabilidade em função das nossas expectativas temporais, baseando-nos no que acontece a cada momento. Nem sempre podemos controlar isso e ser conscientes disso. Mas acontece a todo o tempo”.

Kia não aceita a perceção como “uma forma de obter uma visão fotográfica ou cinematográfica do mundo”. “Acreditamos que temos um bom filme mas se fazemos uma pausa e ocultamos algumas partes da cena e perguntamos o que havia aqui ou ali, as pessoas não terão a mínima ideia. Em geral, quando muito, vemos duas coisas num dado momento. O que acontece é que temos a sensação de ver tudo porque todas essas coisas são possibilidades, mas não estão realmente codificadas. Bem… se achamos que a perceção existe para nos ajudar a fazer o que temos que fazer, para sobreviver neste mundo, então acho que, de facto, é um sistema muito bom”.

À questão “será real o mundo exterior? é tal e qual como o vemos?“, responde que “Não há dúvida de que a realidade é distinta de como a vemos”. Que “as coisas são complicadas e, ao fim e ao cabo, pode ser que o mundo não seja nada como o que percebemos conscientemente”. De outro modo, “que existe um mundo aí fora mas não acredito que possa provar-se”.

Sobre o tempo, rejeita que seja “algo linear e previsível mas é algo que molda as nossas experiências e o estado em que nos encontramos como organismos”. Assim, “se, por exemplo, nos fixamos no mostrador de um relógio que está a trabalhar, parece que o relógio se deteve um instante e que depois volta a pôr-se em andamento. Está relacionado com o facto de centrar a atenção no tempo que se atrasa, no tempo que se desacelera”.

“Do mesmo modo que, como se dizia antes, a perceção não é um filme, a memória também não é um arquivo cinematográfico, quero dizer que a memória é um conjunto de coisas que se selecionam do meio ambiente porque na altura foram para nós interessantes e úteis. A nossa experiência é esse círculo de perceção, ação, memória. Guiar a perceção, realizar uma ação e guardar uma lembrança. É um círculo de influências mútuas e as lembranças mudam constantemente a nossa forma de percecionar o mundo. Depois, apenas escolhemos a parte que foi relevante para nós, conservamo-la na memória e isto muda a nossa forma de percecionar o mundo e supõe-se que se repete neste, esperemos, círculo virtuoso e não vicioso”.

A atenção seletiva é, para Kia, “uma interação entre vários aspetos. Possivelmente um terá que ver com a nossa aprendizagem. Por um lado, quando estamos numa situação na qual formulámos um objetivo ou uma tarefa, o nosso cérebro prepara tudo o que é relevante para o desempenho da dita tarefa, de modo que fora de nós aparecerá tudo o que tenha que ver com esta, e terá predominância. Chamamos a isto enfoque de cima para baixo, isto é, a nossa vontade projeta-se sobre a tarefa e sobre a nossa perceção. Por outro lado, é óbvio que a evolução também é outro longo processo de aprendizagem que levamos codificado, a sensibilidade face a coisas que potencialmente podem ser relevantes para nós… Sinais que há aí, no exterior, por exemplo qualquer coisa muito ruidosa, brilhante, que se mova rapidamente em direção a nós… Tudo isso, o processamos imediatamente. Portanto, é uma interação entre o que queremos e aquilo sobre o que temos que reagir pela nossa própria evolução, tal como está codificado no nosso sistema percetivo”.

E… em que é que devemos confiar mais: na razão (analisando cada situação antes de tomar uma decisão) ou na intuição? Sem uma resposta onde se contrastem as duas opções, “a nossa intuição é o resultado do longo processo de aprendizagem da nossa adaptação e provavelmente será mais útil que o pensamento formal mas, é evidente, acho que nalguns casos o pensamento formal também ajuda. Nalgumas situações, por exemplo, se temos que resolver um exercício de lógica, seguramente haverá que aplicar um pensamento racional. No entanto, acho que na maioria dos casos estamos inconscientemente muito bem preparados para enfrentarmos e reagirmos face às diferentes opções e oportunidades porque temos um conjunto de lembranças que nos permitem otimizar o nosso comportamento, a cada momento”.

[negritos meus]

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