A caixa de Pandora

  1. A curiosidade matou o gato, avisa a sabedoria popular. Nisso concorda com religiões e mitologias. A expulsão de Eva do paraíso judaico-cristão foi castigo por ter comido o fruto da árvore da ciência (do bem e do mal): comê-lo (aviso divino!) tem a morte como pena.

A mitologia grega também tem a sua Eva: chama-se Pandora e, tal como o gato e Eva, também foi morta (e matou-nos) pela curiosidade. Esta “primeira mulher”, adornada com toda a beleza e virtude possíveis, recebeu, como prenda de casamento, uma caixa de origem divina, e a ordem expressa de a não abrir. Mas a curiosidade de Pandora (novamente a curiosidade feminina, santos deuses!) não resistiu: levantou a tampa da caixa, tendo escapado o que estava lá dentro: todos os males, que se espalharam pela Terra… e nos atormentam (consola-nos ter conseguido repor a tampa a tempo de, no fundo, ficar presa a esperança).

  1. Em contraponto: desde o início, a filosofia – e a ciência – tem origem na curiosidade. Ou na admiração, utilizando terminologia de Aristóteles (século IV aC): “foi pela admiração que os homens começaram a filosofar tanto no princípio como agora”.

Segundo a conceção mítica grega, a sabedoria era um dom dos deuses, que a podiam oferecer aos homens: para prever o futuro, como o (in)sucesso de uma guerra, consultavam-se os deuses, que respondiam através de oráculos. Mas Tales (século VI aC), considerado o iniciador da filosofia (ocidental), não pede aos céus resposta às suas perguntas; ele próprio trata disso: é com base nos seus cálculos que prevê um eclipse ou, com um ano de antecedência, uma boa colheita de azeitona.

“Como agora”, observa Aristóteles, referindo um agora que pode ser o nosso: não há verdadeiro saber sem curiosidade. Achar tudo “natural”, óbvio, é o princípio da estagnação do saber; questionar o óbvio é a tarefa de toda a filosofia (a base da evolução de todo o saber).

  1. A curiosidade frutifica no terreno da liberdade de pensamento e do espírito crítico. Terá sido esse também o ambiente onde se desenvolveu a filosofia.

Qual foi a substância que deu origem a tudo o que existe? – esta, a preocupação comum aos primeiros filósofos (da Escola grega de Mileto). Não há aqui espaço para esmiuçar as respostas dos três grandes pensadores dessa Escola (Tales, Anaximandro e Anaxímenes), mas apenas esta ideia: essas respostas foram discordantes, entre si. Se atendermos a que Tales foi mestre de Anaximandro e este, de Anaxímenes, essa discordância induz-nos a conclusão de que, na Escola, se incentivava o espírito crítico e a disposição para pensar por si próprio.

  1. Por que razão serão os deuses, ao contrário destes filósofos, tão ciosos da sua sabedoria? Talvez porque saber é poder. É o que pensa Javé, ao expulsar Adão e Eva do paraíso: pelo conhecimento tornaram-se, diz o próprio, “como um de nós” e é preciso evitar que, comendo da árvore da vida, se tornem eternos (como Ele); é o que pensam os deuses gregos que com a caixa de Pandora se vingaram de Prometeu, que lhes roubou o fogo – e o poder que ele supõe.

Este texto foi publicado no semanário Jornal do Centro.

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