Augusto Abelaira

Augusto Abelaira: “Escrever na água”

Do escritor português Augusto Abelaira (1926-2003), enquanto jornalista, destacam-se as crónicas que assinou no extinto semanário O Jornal, de 1978 a 1992 e sob o título genérico Escrever na água, bem como às que escreveu na secção Ao pé das letras, no Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 1981 a 1996.

Transcrevo uma Escrever na água, de 23/12/1983, com o título S. Bento. Salazar e Mário Soares, em S. Bento: a ditadura, o fantasma do velho ditador — e a democracia.

Augusto Abelaira: crónica "Escrever na água"

Escrever na água : S. Bento [Augusto Abelaira]

Conseguirei eu algum dia livrar-me do fantasma do velho ditador? Não é que ainda pense em Salazar muitas vezes, Salazar foi-se diluindo na minha memória quotidiana, durante longos períodos quase o esqueço ou vivo como se ele nunca tivesse existido. Passaram já aqueles primeiros dias em que nos perguntávamos, depois da Revolução: «Não estarei a sonhar?» Custava-nos a crer que a realidade fosse realidade e hoje, de certo modo, sucede o contrário: Salazar foi um sonho?»

Com dificuldade consigo já imaginar os meus passos diários, o pequeno-almoço, a leitura do jornal, muitas coisas mais e até eu próprio num clima salazarento. Não foi possível.

De súbito, o velho ditador sai dos reinos infernais e aparece-me como um fantasma num mundo nebuloso. Como realidade: afinal, sem ele eu teria sido outro. Melhor ou pior, mas outro. Eu, tu, ele, nós, vós, eles, todos teríamos sido outros.

A presença dele, dizia eu. Em momentos especiais, desencadeados por um pequeno ou grande facto.

Assim: uma noite destas fui, com outros escritores, a São Bento, a casa onde Salazar viveu, onde se deliciou a pensar nas melhores maneiras de nos envenenar a vida. Fui lá jantar, fomos lá jantar, convidados por Mário Soares, um antigo preso, um antigo exilado que o destino colocara entretanto naquela mesma casa.

Coisas do mundo. Em Junho de 74, de visita a Caxias, quem vejo eu na «minha» cela, uma cela relativamente confortável? Silva Pais, o mesmo Silva Pais que me havia interrogado quando eu a ocupara. O terrível destino, o perverso destino! Como poderia eu então (e o Silva Pais) imaginar aquela coincidência que quase me aterrorizou? Refiro-me à coincidência.

Mas agora, em São Bento, o perseguido de Salazar, oferecia-nos um jantar e falava de Fernando Pessoa, o poeta que elogiara Jesus Cristo, que não sabia nada de finanças, forma indirecta de aludir ao velho. Alguma vez o ditador terá pensado nestas voltas que o mundo dá? Não me refiro a Mário Soares, que sempre soube que havia de vir a ser primeiro-ministro. Talvez mais, quem sabe?

Direi que, antes de entrar, andei todo o dia angustiado. Quantas vezes passara naquela rua, olhara para aquela casa, para os portões, para os polícias que guardavam os portões? Sempre rapidamente, a medo — um medo não sei de quê, mas talvez porque alguma coisa pesava na minha consciência. Isto: alugar uma casa do outro lado da rua, um rés-do-chão, abrir um túnel de tal modo que fosse sair exactamente ao quarto de Salazar. Aparecer-lhe de súbito, raptá-lo.

Más se os polícias que vigiavam o palácio tivessem artes de adivinhar os meus pensamentos, embora pensamentos sem acção? Sim, passava a medo em frente daquela casa, receoso de que os polícias olhassem para mim. Que me mandassem parar: «Por que passaria você nesta rua?» Porque sim, mas esta resposta será convincente para um polícia cumpridor? Convincente, apesar de verdadeira, visto que eu passava «apenas porque sim», porque me ficava em caminho e nem ia a pensar no túnel, ia propositadamente a pensar nas coisas mais inocentes, nos rouxinóis, na Gata Borralheira?

Os anos foram ficando para trás e agora ali estava eu, mas o fantasma do homem terrível pesava sobre mim, tirava o sabor aos vinhos, à própria conversa. Pesava sobre todos os outros meus companheiros? À saída, um de nós pediu a Mário Soares: «Mostre-nos o quarto do gajo.»

Subimos uma escada, atravessámos um corredor, abriu-se uma porta. Ali dormira ele, mas num outro ambiente, o quarto transformara-se entretanto em escritório. Que mal vi. quase não vi — pelo menos já se apagou da minha memória, subitamente invadida por uma desmoralizante recordação: o meu túnel nunca poderia ter ido parar ali a um primeiro andar, o meu sonho só poderia ter êxito se Salazar dormisse no rés-do-chão. O meu sonho, mesmo como sonho, fora um fracasso.S. BentoSubimos uma escada, atravessámos um corredor, abriu-se uma porta. Ali dormira ele, mas num outro ambiente, o quarto transformara-se entretanto em escritório. Que mal vi. quase não vi — pelo menos já se apagou da minha memória, subitamente invadida por uma desmoralizante recordação: o meu túnel nunca poderia ter ido parar ali a um primeiro andar, o meu sonho só poderia ter êxito se Salazar dormisse no rés-do-chão. O meu sonho, mesmo como sonho, fora um fracasso.

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