Em defesa do Natal e do cristianismo

Vale a pena defender um ponto de vista liberal e agnóstico hoje caído em desuso: o de que o Natal é uma festa cristã de importância crucial para a civilização demoliberal a que pertencemos. Vale a pena sair em defesa do Natal.

E o ponto é este: ao contrário do que pregam hoje os pós-modernistas, a nossa civilização liberal não assenta na recusa de todas as tradições, nem sequer na crença de que todas as tradições são equivalentes e, por isso, igualmente irrelevantes.

O cristianismo não é apenas mais uma das múltiplas tradições religiosas que concorrem entre si nas sociedades seculares do Ocidente. O cristianismo, em particular a tradição moral judaico-cristã, é o berço do liberalismo, incluindo o liberalismo secular que hoje dá o pano de fundo à cultura política ocidental. Embora não seja hoje “politicamente correto” recordar isto, é isto que deve ser hoje recordado.

O maior e mais admirável princípio moral do cristianismo é o de que todos os homens são filhos do mesmo Deus, criados por Ele à Sua imagem e semelhança. Isto significa que todos os homens possuem o mesmo valor moral, a mesma dignidade moral. Por isso, nenhum indivíduo pode legitimamente tratar um seu semelhante como um meio: todos os indivíduos merecem ser tratados como um fim.

Como e porquê foram os cristãos capazes de proclamar este princípio moral quando isso era inteiramente contrário ao seu interesse próprio, tendo-lhes custado terríveis sofrimentos e perseguições? Isso só foi possível porque os cristãos acreditavam na existência de uma lei mais alta, uma lei moral independente dos caprichos dos homens e dos poderes de plantão. Os cristãos desafiaram o princípio subjacente a todas as tiranias – o princípio de que “o poder é o direito” – e declararam que a lei de Deus é mais alta do que a lei dos homens. Em suma, eles disseram que a distinção entre o bem e o mal não depende dos caprichos dos homens, de um, de alguns, nem mesmo de todos reunidos em coletivo.

Para os cristãos, a lei moral é dada por Deus e está contida nas Escrituras. É uma lei corajosa que manda auxiliar os que sofrem, perdoar os que nos ofendem, cumprir as promessas e respeitar os contratos, agir com temperança e não ser juiz em causa própria. A tentativa continuada de obediência a essas regras bem como a discussão crítica acerca delas, constituem um dos segredos – não certamente o único, mas seguramente um dos cruciais – que fez o prodigioso sucesso intelectual e material do Ocidente.

A lei moral das Escrituras é uma lei exigente, que exige esforço, mas não é uma lei só para alguns. Todos podem aceder à lei moral, porque todos são filhos de Deus – a lei moral foi inscrita no coração de todos os homens enquanto aptidão para descobrir a distinção entre o bem e o mal. O meio através do qual o homem pode descobrir a lei moral é a sua consciência, o seu sentido de responsabilidade pessoal, iluminado ou estimulado pelo estudo e pela discussão das grandes obras, nomeadamente pelo estudo e discussão da Bíblia.

Todos os grandes falsos profetas adorados no século XX – Nietzsche e Freud, Lenine e Estaline, Hitler e Mussolini – procuraram ridicularizar a ideia de consciência individual. Disseram que era um mito concebido para obrigar os homens a inibir ou restringir a sua liberdade, a refrear os seus poderes e apetites revolucionários. São típicos embusteiros: a consciência individual é a força moral mais poderosa ao cimo da Terra, mais poderosa do que os tiranos mais poderosos. É ela que nos impede de dormir quando erramos, que nos impele a desobedecer quando nos mandam fazer o mal, que nos leva a questionar a autoridade e absoluta dos que pretendem substituir-se à lei moral.

Foi do reconhecimento da importância crucial da consciência individual que nasceu o liberalismo. Ao contrário do que pregam os discípulos da Revolução Francesa – um conflito estéril entre dois partidos autoritários e coletivistas, o do antigo regime e o da revolução –, o liberalismo não nasceu do combate contra a religião, muito menos contra o cristianismo. O liberalismo nasceu da convicção judaico-cristã de que existe uma lei moral mais alta que não depende dos poderes de plantão. E nasceu da convicção cristã de que essa lei mais alta – a lei moral – está inscrita no coração de todos os homens. Porque o Homem pode conhecer a lei moral, ele pode ser livre: este é o primeiro pressuposto do liberalismo.

Também a tolerância liberal não nasceu da convicção relativista de que a verdade não existe e de que apenas existem as verdades de cada um. A tolerância liberal nasceu da convicção – expressa por Milton e Locke – de que Deus, por ser bom, não deseja que os homens O sigam em resultado da coerção. A descoberta da lei moral deve fundar-se na adesão genuína da consciência individual. Em segundo lugar, a tolerância liberal nasceu da convicção cristã de que a condição humana é a da incerteza e do erro. Se a perfeição é vedada ao Homem, nenhuma autoridade humana deve ser investida da autoridade suprema de impor a lei moral: por ser humana, e portanto imperfeita, essa autoridade ficaria mais do que nunca sujeita à tentação do erro e do abuso de poder.

Mas é bem claro que a liberdade, neste sentido liberal original, é um fardo, não é a licença de agir como nos aprouver. É o fardo de sermos humanos, de termos de exercer o juízo crítico, de não devermos seguir a multidão ou os poderosos para fazer o mal. É também o fardo de uma busca que não tem fim, porque a condição humana veda-nos o acesso à certeza e à perfeição.

Esta é, em suma, a mensagem do Natal, a mensagem que deveria ser recordada por todos os liberais – crentes ou não crentes, conservadores ou progressistas –, por todos aqueles que estão conscientes da precariedade da nossa civilização e de quanto ela deve à tradição cristã.

Infelizmente, esta mensagem moral é hoje de novo ridicularizada por uma época de relativismo sem freios, que se reclama abusivamente da liberdade. A fatal arrogância dos falsos profetas convida os indivíduos a não respeitarem limites e a desprezarem todas as tradições. “Se Deus está morto” – dizem os relativistas – “tudo é permitido”.

Mas Deus não está morto. Mesmo para os não-crentes – designadamente para os liberais que são discípulos do iluminismo escocês de Hume, Smith e Ferguson de Burke, Acton e Tocqueville –, mesmo para esses, nos quais me incluo, Deus não está morto. Ele vive no coração de todos os homens, onde a lei moral está inscrita, e onde a consciência individual impele os homens a formular juízos morais assentes na distinção entre o bem e o mal. É por isso que vale a pena sair em defesa do Natal.

(ESPADA, João Carlos. A Tradição da Liberdade. Cascais: Principia, 1998, p. 149-152)

NOTA d’O meu baú

Uma análise do conteúdo d’O meu baú não precisa de ser muito atenta para facilmente evidenciar o seu carácter eclético. Assumidamente eclético e mesmo contraditório.
Não porque o ecletismo seja o modo mais interessante de fazer filosofia, mas porque é um modo de concretizar um espaço que se quer provocador da reflexão (crítica).
Por isso, a inclusão de qualquer “artigo” obedece apenas a este último objetivo.

O presente extrato de João Carlos Espada enuncia algumas linhas-mestras do pensamento liberal (ou de um certo pensamento liberal).

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2 thoughts on “Em defesa do Natal e do cristianismo”

  1. Pá, acho o texto do JCE bastante tendencioso, pobre e enganador.

    A ideia algo batida de que a chamada “civilização ocidental” tem como inspiração fundamental o cristianismo é simplesmente falsa, esquecendo-se sistematicamente a herança grega, que deu origem à filosofia, à ciência e, em geral, à reflexão crítica que, essas sim, são a principal matriz da nossa civilização. Ora, os gregos não eram cristãos, pois não?

    Além disso, o texto parece assentar num falso dilema: o cristianismo é a única alternativa ao relativismo. Mas isto é ridículo, pois não é preciso ser-se cristão para rejeitar o relativismo.

    E há uma passagem no texto que acho particularmente infeliz. Diz ele que «Os cristãos desafiaram o princípio subjacente a todas as tiranias – o princípio de que “o poder é o direito” – e declararam que a lei de Deus é mais alta do que a lei dos homens.» Desafiar todas as tiranias para a substituir por uma tirania suprema é, afinal, uma maneira de reforçar o princípio subjacente às tiranias. Se o poder é o direito e se se diz que este é uma lei divina, decorrente da autoridade absoluta de Deus, então não vejo em que isso é diferente de qualquer outra autoridade convencional.

    Enfim…

    1. Duas considerações para o sofista amador.

      Se a ideia de que a “civilização ocidental” se fundamenta nos valores judaico-cristãos é “falsa” e “batida”, não vai ser um elogio primário à herança grega que vai deixar isso claro. A sugestão de que uma tal de “análise crítica” originalmente grega seja a verdadeira base de alguma coisa não passa de uma opinião tendenciosa.

      Chamar a fé em Deus de “tirania suprema” também é uma ideia “falsa” e “batida”, indigna de alguém que defende a “análise crítica”.

      Para o nível dos queixumes apresentados, bastam estas considerações.

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