I
Uma das caracterizações comuns dos filósofos apresenta-os como gente com uma grande panca. Uma caracterização que pode ser ilustrada por vários exemplos, assumindo a panca significados diferentes conforme os casos.
A panca por que Descartes (1596-1650) é conhecido do grande público é a dúvida. A sua dúvida de (quase) tudo pode justificar-se pelo contexto histórico, mas a justificação mais interessante é a filosófica — é a pergunta teremos algum conhecimento (algumas crenças) do qual não possamos duvidar?
Descartes duvidou das informações que os sentidos nos fornecem, e nessa dúvida a panca não é grande: sabemos quantas vezes essas informações estão erradas — e, como diz o povo, mentiroso que mente uma vez pode mentir sempre (quem nos engana uma vez pode enganar-nos sempre)…
Já quando Descartes nos propõe a possibilidade de o mundo não ser mais do que um sonho… bom… a panca aumenta. Todos nós teremos tido já a experiência de sonhos muito, muito reais… até acordarmos e verificarmos que tudo não passou de um sonho. Não poderemos estar a sonhar e a realidade que vemos não passar de um sonho? Temos que admitir que pode ser, ainda que tal hipótese nos pareça estranha: é verdade que temos a certeza de estarmos acordados, mas quando sonhamos não temos também essa certeza?
Deixaremos, então, de ter certeza do que quer que seja? Pensando bem, pareceria que não. Suponha o meu leitor que sonha que lhe saiu o euromilhões, duas semanas seguidas: numa delas, 7 milhões de euros e na segunda, 3 milhões. Faz grandes planos para gastar alguns dos 10 milhões… até acordar e aperceber-se de que… foi tudo um sonho. Tudo, não; algo do sonho continua a ser verdade: que 7 milhões mais 3 milhões dão um total de 10 milhões. Parece, então, que as verdades matemáticas são seguras, porque não nos são dadas pelos sentidos nem “arranhadas” pelo argumento do sonho.
Parece — digo eu, mas não Descartes. A dúvida do filósofo francês atinge também as verdades matemáticas e todas as verdades do género (resumidamente, as verdades a priori. Se não sabe o que é isto, por favor leia a minha explicação aqui). De que modo as atinge? Através de uma hipótese com muito mais panca do que a do argumento do sonho: a hipótese de um génio maligno cuja ocupação fosse a de nos enganar constantemente, fazendo-nos acreditar que são verdadeiras crenças que não passam de ilusões. A proposta de Descartes é esta: seja uma crença qualquer; pode esse génio maligno fazer-me acreditar que essa crença é verdadeira, quando na realidade é falsa? Se a resposta for sim, então essa crença não é segura (atenção! não é que a crença seja falsa; não é seguramente verdadeira).
Pode esse diabrete enganar-nos fazendo-nos crer que, por exemplo, 7 mais 3 são 10, quando na realidade não são? Pode! Então, temos que duvidar dessa crença — no fim de contas, temos que duvidar de todas as crenças, porque o diabrete pode enganar-nos sempre. Bem… sempre, sempre, não, concluirá Descartes. Admitindo a hipótese do génio maligno, tenho que duvidar de tudo (porque em tudo ele me pode enganar)… exceto disto: de que duvido. Porque posso duvidar de tudo, exceto de que duvido: não é possível duvidar de que duvido, porque, se eventualmente duvidasse da minha dúvida, estaria… a duvidar. Noutros termos, diz Descartes, penso. E cá temos a famosa frase de Descartes: penso, logo existo. É a primeira verdade que escapa à dúvida (quase) geral que tínhamos formulado antes.
II
Já aqui fiz referência ao génio maligno, numa “versão mais atual”. Mas podemos encontrar outras “versões” destas pancas de Descartes em obras popularizadas; por exemplo, no filme Matrix (mais comummente associado à alegoria da caverna de Platão — uma alegoria de que o génio maligno pode ser um… avatar 🙂 ).
Em Matrix, a personagem principal (Neo) vive atormentada pelo vago pressentimento de que pode estar a viver num sonho e não no mundo real. Outra personagem, Morpheus, acentua essa hipótese, em diálogo com Neo:
Você já teve um sonho, Neo, que parecia ser verdadeiro? E se você não conseguisse acordar desse sonho? Como você saberia a diferença entre o mundo dos sonhos e o mundo real?
A hipótese de vivermos todos (incluindo eu, que escrevo, e o meu leitor) prisioneiros de uma Matrix, de vivermos num mundo irreal do género do que é descrito por Morpheus — essa hipótese é analisada por Thomas Bénatouïl no livro Matrix: machine philosophique (VVAA. Paris: Ellipses, 2003, p. 109-119). Apresenta três respostas para essa questão:
- Não estamos na Matrix, porque, se estivéssemos, não poderíamos sabê-lo assim tão facilmente. Neste caso, ou (a) Matrix é um simples filme de ficção científica para jovens adeptos dos vídeo-jogos, ou então (b) Matrix poderia ser um aviso ou até uma premonição do que poderá acontecer à humanidade num futuro.
- Estamos na Matrix, mas as máquinas que a criaram já não a controlam e não conseguiram impedir alguns rebeldes — máquinas ou humanos — de difundir no interior da Matrix o filme Matrix e de assim revelar a verdade à humanidade. E poderemos deste modo admitir que esta cedo será libertada da Matrix de um modo ou de outro.
- Estamos na Matrix, mas esta é tão perfeita que nós recusamos acreditar na sua existência: vemos o filme Matrix como uma obra de ficção científica, quando na verdade ele descreve a nossa situação real.
Pergunto ao meu leitor o que acha de cada uma destas hipóteses. E do seguinte:
- Estas pancas de Descartes — esta hipótese da irrealidade do nosso quotidiano — serão, portanto, retomadas depois de Descartes, e não são invenção do próprio. Antes dele, os céticos da Antiguidade admitem já essa hipótese (leia, aqui, um texto sobre o ceticismo).
- Na época em que Descartes viveu, algumas obras literárias partilham essa hipótese de um mundo feito de sonho. Por exemplo, La Vida es sueño (A vida é sonho), de Calderón de la Barca (1600-1681). Ou La illusion comique de Pierre Corneille (1606-1684) (texto completo, em francês, aqui).
- Uma das versões mais conhecidas de filósofos atuais é a célebre experiência mental de Hilary Putnam (nascido em 1926) conhecida como o cérebro numa cuba.
Pingback: Descartes, Matrix e Inception: Será que estamos vivendo em um sonho? – Conspirando teorias