As novas tecnologias conseguiram ampliar a visibilidade ou transparência social mais do que nunca — mas a transparência tornou-nos melhores? Para aqueles que pensam que a privacidade é um direito individual inalienável, a cultura atual de videovigilância, os múltiplos sistemas de gravação, etc., são uma opressão sufocante. Mas o princípio da inspeção e vigilânica, universalmente aplicado, talvez pudesse ser um instrumento de aperfeiçoamento da democracia, algo que nos permitisse conhecer o que os nossos governantes estão realmente a fazer. Quer dizer, os presumíveis abusos dos meios de comunicação que mais invadem a privacidade, ao mesmo tempo que submetem as nossas vidas ao escrutínio público, estariam a proteger as nossas liberdades individuais. Por outras palavras, serão as novas tecnologias uma forma de tirania ou uma libertação da tirania? Fortalecer-se-á com elas a democracia?
Os limites entre o que queremos manter na privacidade e o que desejamos tornar público estão em constante evolução. Ao longo da História do nosso mundo, desenvolvemos um desejo de maior privacidade, crescendo paralelamente o nível social. Os pobres nem sequer podiam dispor de uma casa com compartimentos individuais.
Atualmente, quem pode dispõe de um compartimento para cada membro da família, e outro para os hóspedes, com casa de banho privativa para cada quarto mais um para os visitantes. Nem sempre foi assim: em muitas outras culturas, a história apresenta-nos épocas em que os casais faziam amor no mesmo sítio onde os seus filhos jogavam ou os seus irmãos ou cunhados dormiam ou comiam.
O Facebook, tal como as restantes redes sociais, que hoje refletem ou estão a liderar uma mudança nas normas sociais acerca da privacidade, parecem sugerir que as pessoas acreditam nos benefícios de nos interligarmos com os nossos semelhantes, partilhando todo o tipo de informação, promovendo as carreiras e pondo de lado a privacidade.
O filósofo Jeremy Bentham imaginou na sua obra Panopticon um sistema de vigilância no qual os indivíduos observados ficavam com as suas vidas a descoberto perante os encarregados de os vigiar, mas sem que estes fossem vistos a partir de qualquer posição possível. Bentham concluía que, com este pressuposto de que a nossa vida podia ser observada em qualquer momento, o nosso comportamento moral melhoraria. Algumas experiências como as de Melissa Baateson em Newcastle University comprovaram que bastava colocar um poster com um par de olhos sobre a caixa onde os utilizadores devem depositar o custo das bebidas consumidas na cantina da universidade para aumentar o dinheiro que se arrecadava, em comparação com a presença de um poster com flores.
Mesmo no campo do altruísmo, outras investigações em Stanford University concluíram que o simples conhecimento do montante de doações dos outros aumenta o nosso, no caso de aquele ser mais elevado. Do mesmo modo que saber que o nosso consumo de eletricidade é superior à média dos nossos vizinhos leva-nos a poupar.
Quer dizer, é tão evidente a influência do olhar dos outros nos nossos atos como o é a influência da comparação do nosso comportamento com o dos nossos semelhantes, mesmo nos casos em que não exista castigo.
O mundo antes da existência do Facebook e da WikiLeaks era sem dúvida mais seguro para a nossa privacidade, mas é difícil garantir que fosse um mundo melhor.
[Peter Singer]
[O nº 11 da revista Filosofía Hoy publicou um texto-síntese (de que este d’O meu baú é tradução) do ensaio Visible man: Ethics in a world without secrets de Peter Singer. O ensaio original inglês, mais extenso e de leitura recomendável, está aqui; se o quiser baixar e não conseguir, use esta nossa dica]
[Este é um texto com interesse para os alunos de Filosofia do 11º ano, designadamente, para o estudo dos Temas/Problemas da cultura científico-tecnológica].