Feminilidade e masculinidade

A Eva futura

Inevitavelmente, a cultura em que vivemos configura e limita a nossa imaginação e, ao permitir-nos agir, pensar e sentir de uma certa maneira, torna cada vez mais complicado ou impossível que possamos agir ou sentir de uma forma oposta ou simplesmente diferente.

Na nossa cultura, atribuímos tradicionalmente a cada sexo umas diferenças de género muito claras:

MASCULINO FEMININO
azul rosa
gravata brincos
agressivo passiva
obcecado pelo sexo reticente em relação ao sexo
só pensa no mesmo dói-lhe sempre a cabeça
triunfador pouco ambiciosa
executivo secretária
provedor distribuidora
sóbrio estridente
sério frívola
o futebol o mexerico
Exame a Hola
Gilette, o melhor para o homem Ausonia, porque gosto de ser mulher
Comporta-te como um homem Utiliza as tuas armas de mulher

Deste modo, os nossos papás, as nossas mamãs e as nossas professoras inculcaram-nos desde pequeninas a ideia de que, para nos fazermos valer, teríamos de encontrar um homem que tomasse conta de nós e da nossa prole; e, a eles, a de que para crescerem como homens de verdade deveriam arranjar uma boa mulherzinha que cozinhasse, limpasse e passasse a ferro para eles, sem que isso constituísse impedimento a que, de vez em quando, se enrolassem com outra menos boa que fizesse alguma coisa diferente por eles. Dir-me-ão que a minha geração não cresceu com esses parâmetros. E eu responder-lhes-ei, uma ova!

Por exemplo (e já contei isto umas três mil vezes) no colégio de freiras diziam-me que «devia esforçar-me por fazer os deveres porque um dia teria de ajudar os meus filhos a fazerem os seus»; em minha casa, nós, as raparigas, tínhamos de fazer as camas e levantar a mesa e arranjar a cozinha, depois das refeições, enquanto os rapazes tinham uma vida das mais regaladas, isentos de tais obrigações (temos de reconhecer que eu, atendendo àquela história de ser o benjamim, exagerava conscientemente a minha natureza lenta e desajeitada a fim de escapar, o mais possível, às tarefas domésticas); e, no bairro, o rapaz com uma história sexual era um homem com todas as letras e com uns tomates mais pretos do que um touro semental, mas a rapariga que se pensasse que era «fácil» era uma puta. Esta moral dupla justificava que os meus irmãos não tivessem hora para entrar em casa (ou toque de recolher) e que até pudessem, se quisessem, dormir fora, mas também justificava, cuidado, que se levantasse o alvoroço caso eu aparecesse mais tarde do que as onze. E se protestava porque aos meus irmãos não era exigida a mesma pontualidade, a resposta era sempre a mesma: «É diferente: eles são rapazes!» E, atenção, não estou a criticar os meus pais: este comportamento era a tónica geral em todas as famílias do meu meio.

A feminilidade, na sua visão tradicional, centra-se na imagem da mulher como mãe, pessoa que dá alimento, calor e apoio emocional. A masculinidade centra-se no comando: engloba a acção do homem que luta para vencer obstáculos, controlar a natureza e constituir-se em patriarca.

Mas, a partir do momento em que se aceita a incorporação da mulher no campo laboral, estes papéis têm de mudar: a mulher já não pode ser exclusivamente passiva e frívola e o homem reivindica o seu direito a interessar-se pela moda, a decoração ou as crónicas do coração, se lhe der na gana, sem que isso implique que seja imediatamente rotulado como homossexual (ou feminino, segundo a nossa cultura, embora a apetência para um sexo ou outro não predetermine a adequação do indivíduo a qualquer padrão de género).

Uma vez que admitimos que a maioria das diferenças que tradicionalmente se estabelecem entre os sexos não são naturais, mas sim que se atribuem de forma arbitrária consoante cada cultura, a questão em debate é: existem as diferenças reais entre homens e mulheres? E, se existem, quais são?

[ETXEBARRÍA, Lucia. A Eva futura: o que significa o feminismo no século XXI. Lisboa : Editorial Notícias, 2001, p. 23-24]

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