Pobreza sem contrato

  1. No conto Sorvetes e pão do seu Os Putos (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 181-182), Altino do Tojal apresenta-nos um petiz sorridente a pedir cinco croas a um cidadão gordo rodeado de copos de cerveja vazios, na esplanada de um hotel de praia. É pra comer um sorvete, adianta o puto. Ao ouvir a justificação da recusa da esmola (Se fosse pra pão, eu daria, avisa o cidadão gordo), o petiz emenda: É pra pão. Mas a nova escusa para o cidadão gordo persistir em não dar é novamente clara: Tu mentiu! Tu pediu pra sorvete! A gente não deve nunca mentir: é feio.
  1. Quem é pobre não tem vícios, diz a sabedoria popular – a tal que nem sempre é (representativa) do povo. Moral do aforismo, traduzida em linguagem troikiana: quem não tem dinheiro deve abster-se de tudo o que está acima das suas possibilidades. E trabalhar (como se fosse verdade que Os portugueses têm vivido acima das suas possibilidades – devem é trabalhar para sair da pobreza).
  1. A pobreza não é um vírus que se respire do ar ou uma desgraça natural que nos caia do céu. É um produto humano. Por isso, a ideia de que a pobreza é algo que se vence com o trabalho – ou que quem trabalha é rico – é, no mínimo, estranha (muitas vezes, gritantemente provocadora de indignação). Um gestor português com uma “retribuição” anual “limitada” (sic!) a 600 mil euros ganha mais do que 100 trabalhadores (trabalhadores!) com salário mínimo. Outros possíveis quadros comparativos levar-nos-iam à mesma conclusão: a distribuição, escandalosamente desigual, da riqueza do mundo está escandalosamente longe de corresponder à distribuição do trabalho.
  1. Negócio é negócio – contrato é contrato. Este é o sacrossanto princípio em que se fundamenta a transformação dos mercados em entidade soberana. Parece que tudo se sacrifica aos mercados (e ao firme propósito de honrar os contratos). Parece, mas não é: aos contratos, são sacrificados os pobres – e os remediados, a chamada (ex)classe média. Para honrar contratos com os mercados (aqui num sentido muito vasto que engloba todas as instituições emprestadoras), desrespeitam-se contratos com os trabalhadores (diminuindo salários, por exemplo). O que é, no mínimo, contraditório.
  1. Um contrato é um acordo consciente e voluntário entre adultos. É duvidoso que muitos dos contratos que os novos pobres atualmente têm dificuldade (ou impossibilidade) de cumprir hajam sido feitos nessas condições. Diversos fatores geram dúvidas relativamente aos dois pressupostos referidos: sirvam como exemplo as facilidades que a publicidade apregoa(va) e os textos dos contratos concretizavam. Prometeram-nos que tudo seria facilmente resolvido (quero dizer, pago): essas promessas, bem como a dificuldade de prever o futuro, põem em causa a obrigatoriedade (moral, pelo menos) de cumprir o que foi contratado. É hora de todos (e não apenas um dos lados) assumirem as suas responsabilidades.

Este texto foi publicado no semanário Jornal do Centro.

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