Existencialismo

Existencialismo ou filosofia da existência? A respeito do existencialismo o consenso não é grande. Entre os historiadores da filosofia, é relativamente consensual ter sido Kierkegaard o primeiro existencialista. Já não é consensual, entre os historiadores da filosofia, que Kierkegaard tenha sido um filósofo. Kierkegaard decerto não se via a si mesmo como filósofo. Por outro lado, Sartre, Merleau-Ponty, Jaspers, Heidegger e Marcel apresentam-se como tal.

Para quem quer que se ocupe do existencialismo, as dificuldades ainda só agora começaram. Jaspers e Heidegger nunca aceitaram a designação de existencialistas — tendo ambos, inclusivamente, atacado o existencialismo como uma atitude contrária à filosofia da existência. Heidegger nem sequer aceitaria a designação de filósofo da existência: se acontece ocupar-se da existência, é apenas porque pensa que é pela existência que podemos alcançar o ser. Já Sartre e Merleau-Ponty, por sua vez, nunca recusaram o título de existencialistas — ao passo que Marcel só parece aceitá-lo em determinadas condições.

O existencialismo é um ateísmo? Quando se pensa em existencialismo, o primeiro nome que geralmente ocorre é o de Sartre — que é, manifestamente, ateu. Mas Kierkegaard considerava-se um pensador religioso — como religiosos são, também, Jaspers e Marcel. E Heidegger parece difícil de situar neste quadro.

O existencialismo é um humanismo? Enquanto Sartre declara que o existencialismo é um humanismo, Heidegger manifesta-se abertamente contra a ideia de humanismo. Jaspers e Marcel não recusariam a ideia de humanismo — mas talvez não lhe dessem o mesmo sentido. E Kierkegaard não é, manifestamente, um humanista.

Afinal, o que é o existencialismo? O termo existencialismo não refere propriamente uma teoria, nem mesmo um conjunto de doutrinas a que poderíamos dar o nome comum de filosofia da existência.

O existencialismo é sobretudo, na expressão de Jean Wahl, uma «atmosfera», um «clima que é possível sentir». E o que é possível sentir, no existencialismo, é essencialmente uma inquietação perante as situações com que a vida nos confronta.

Em vez de um conjunto de teses dedutivamente relacionadas entre si, o existencialismo é percorrido por alguns temas: o indivíduo, a experiência da decisão, o desamparo, a solidão, a angústia. Na ausência de uma compreensão racional do universo, a vida humana encontra-se permanentemente no limiar do absurdo. Daí que os pensadores existencialistas adotem uma atitude emocional perante a vida, um sentimento de consternação face ao carácter contingente da existência humana.

O EXISTENCIALISMO DE SARTRE. É consensual que foi a perspetiva sartriana que mais influenciou Vergílio Ferreira. Desse ponto de vista, do existencialismo de Sartre é possível destacar algumas teses e conceitos fundamentais:

  1. Deus não existe. A tese da morte de Deus foi o principal legado de Nietzsche ao existencialismo de Sartre: os homens criaram Deus à sua imagem e semelhança — mas trata-se de uma ficção que deve ceder perante a afirmação dos impulsos vitais. Se Deus não existe, então tudo é permitido. Significa isto que a vida não tem um sentido dado à partida: compete-nos a nós — a cada um de nós — criá-lo. A vida não é o plano de uma mente transcendente, que cada um de nós seria suposto cumprir: a vida é o que fizermos dela.
  1. «No homem, a existência precede a essência». Se não há um deus que possa ter concebido a essência do Homem, então não há nada a que possamos chamar natureza humana. Se não há Deus, não há um plano prévio que estejamos destinados a cumprir.

Porque fazemos as coisas a partir de conceitos, dizemos que as coisas têm primeiro uma essência — o conceito, o plano — e só depois a existência. Por isso somos conduzidos à ilusão de um deus criador, um deus à nossa imagem e semelhança — um deus demasiado humano, na perspetiva de Nietzsche. O homem começa por existir, e só à medida que vai existindo é que se vai fazendo a si mesmo. Primeiro é-se, e depois é que se é isto ou aquilo. A essência, no homem, só aparece no fim. Deste modo, enquanto as coisas físicas são «em si», o homem é um «para si».

Enquanto existente, tenho um conjunto de possibilidades que me obrigam a escolher — e, ao escolher, é a mim que me escolho. Não está determinado à partida que vou ser isto ou aquilo: vou ser o que as minhas decisões me fizerem. Isto exige do existencialismo uma defesa cerrada do livre-arbítrio.

  1. «O homem está condenado a ser livre». Se a vida não tem, à partida, um sentido determinado — já que não há um deus que lho dê —, então nós não podemos evitar criar o sentido da nossa própria vida. Por isso, estamos condenados à liberdade.

A vida obriga-nos a escolher entre vários possíveis. Podemos criar jardins ou campos de morte. Nada nos obriga, à partida, a escolher uma coisa ou outra. Mas ser livre significa que somos nós, e só nós, os responsáveis pelas escolhas que fazemos.

Refugiarmo-nos numa suposta ordem divina mostra apenas a incapacidade para arcar com a responsabilidade das nossas próprias decisões. Não há álibis. Mas a incapacidade de lidarmos com as consequências da nossa absoluta liberdade e da nossa responsabilidade absoluta está na origem da má-fé.

  1. A má-fé. O conceito de má-fé surge na obra de Sartre O Ser e o Nada

    [ver Sartre, J-P., L’Être et le Néant, Paris, Gallimard, 1943. Sobre o conceito de má-fé ver também Warburton, N., Grandes Livros de Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2001, pp. 212-215. Para a compreensão do conceito de má-fé ver também as noções de facticidade e transcendência]

    e ganha uma relevância especial no contexto de uma filosofia que defende o livre-arbítrio.

A má-fé é um tipo de auto-ilusão. Mas é um tipo especial de auto-ilusão, porque não se trata de um erro — no sentido em que posso estar enganado acerca das minhas crenças, — mas de uma mentira — no sentido em que quero ocultar de mim mesmo uma crença particular acerca da minha liberdade. Incorrer em má-fé é agir «como se». É fingir. O empregado de café que representa o seu papel age «como se» estivesse a ser determinado pela sua função; «como se» não pudesse agir de outro modo. Mas Sartre afirma que, ao agir «como se», o empregado de café «coisifica-se», objetiva-se. Ora, por muito que se esforce para se tornar no papel que representa, um empregado de café não pode ser um empregado de café no mesmo sentido em que uma mesa é uma mesa, porque um ser-para-si não pode tornar-se um ser-em-si, a não ser pondo fim à sua própria existência.

Ao agir «como se», o empregado de café procura persuadir os outros de que é apenas um empregado de café — um objeto, um ser-em-si. «Um merceeiro que sonha, diz Sartre, é ofensivo para o comprador, porque já não é totalmente um merceeiro». Mas o empregado de café que age «como se» fosse o papel que procura representar pretende ocultar a si mesmo que é livre, que de facto podia ter escolhido agir de outra maneira, ainda que tal significasse ser despedido. Podia tê-lo feito, porque era realmente livre de o fazer. «Recusar escolher, diz ainda Sartre, é escolher não escolher». Agindo «como se» não pudesse escolher agir de outra maneira, o empregado de café incorre em má-fé.

A má-fé é uma maneira de fugir à liberdade e, consequentemente, à responsabilidade. Nesse sentido, é possível dizer-se que a má-fé é censurável; que há algo de moralmente errado em existir nessa condição. Ainda nesse sentido, seria possível dizer-se que a autenticidade, enquanto oposto da má-fé, é uma virtude. Mas O Ser e o Nada ocupa-se de fenomenologia da existência e não de ética, logo não procura responder à questão acerca de como se deve viver, mas antes descrever a maneira como se vive.

  1. A angústia. Somos inteiramente livres, logo inteiramente responsáveis. Livres e duplamente responsáveis, porque, se não há uma natureza humana, ao fazer-me estou a fazer o próprio homem: o que eu fizer torna-se (o) humano. Mas sermos livres significa estarmos sós perante a indiferença do universo. É este sentimento de solidão que está na origem do desamparo e da angústia.
  1. «O inferno são os outros». A minha liberdade inevitável confronta-se, todavia, com o olhar do outro. Os outros tendem a olhar-me como se eu fosse uma natureza permanente: um indivíduo com estas ou aquelas características. Desse modo, objetivam-me, reduzem-me a uma coisa. A minha irredutível subjetividade é dificilmente compatível com a maneira como os outros me veem.
  1. O absurdo da vida. O sentimento do absurdo da vida surge quando despertamos da nossa existência quotidiana e nos confrontamos com a ideia da morte inevitável. Afinal, que sentido pode ter tudo isto se estamos condenados ao nada? A existência torna-se autêntica perante a ideia de que o homem é um «ser-para-a-morte».

É nessa tensão que o sentido da existência pode surgir como projeto singular a empreender.

[© Jul/2004. Da autoria de Artur Polónio, professor de Filosofia, este texto foi escrito para apoiar os alunos do 12º ano na leitura de Aparição de Vergílio Ferreira]

9 thoughts on “Existencialismo”

  1. António não te parece…forçado, senão incorreto, afirmar que a filosofia existencialista é uma filosofia que defende o livre arbítrio, quando pensamos justamente no absurdo e na noção de má-fé?

  2. Caro Ismael,

    Receio não compreender a sua objeção. Do facto de termos livre arbítrio não se segue que todas as nossas ações são livres. Logo, a má fé e o livre arbítrio não parecem incompatíveis. Por outro lado, do facto de a nossas vidas estarem destinadas a extinguir-se não se segue que algumas das nossas ações não são livres. Morrer é algo que acontece aos seres humanos, e não algo que os seres humanos façam livremente. Não quer esclarecer a dificuldade que aponta?

    Artur Polónio

  3. Artur não compreendo é a tese de que a filosofia existencialista é “uma filosofia que defende o livre arbítrio”. Defende porquê? Defende como?

    1. Ismael, parece-me que não há contradição nenhuma:

      1) Segundo o existencialismo (ateu — o de Sartre), a tese de que o Homem é livre justifica-se por (no caso do Homem) a existência preceder a essência (como, aliás, o texto refere): porque Deus não existe, não existe também uma natureza humana; portanto, o Homem “de início não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo”. O herói não nasce herói — mas faz-se; tal como o covarde. (de “O existencialismo é um humanismo”)

      2) Decorre daqui também que “a vida, em si mesma, não é nada”, não tem sentido (a priori; esse sentido que lhe poderia ser dado por um Deus, se existisse). É absurda. “É quem a vive que deve dar-lhe um sentido”.

      3) A má fé é, como outras, uma escolha (uma invenção, uma dissimulação, uma mentira) do Homem. Ou seja, um ato de liberdade: recusar a liberdade (dissimulando-a) é um ato de afirmação da liberdade.
      Há aqui contradição? A mesma (ou nenhuma) da tese “estamos condenados a ser livres”: não somos livres de deixar de ser livres, pelo que qualquer escolha será a escolha de cada um — cada qual “escolhe sozinho”.

      condenados porque no nos hemos dado a nosotros mismos la libertad, no nos hemos creado, no somos libres de dejar de ser libres.

      1. Sim – estamos condenados a ser livres. Mas Sartre não nega o determinismo, e aquilo de que se trata quando se trata da liberdade, em Sartre, não é um livre-arbítrio oposto à causalidade.

        O ponto é que, apesar de o humano estar determinado, ou melhor, quer esteja quer não, no momento em que a decisão se impõe, ele está condenado a não poder fugir de si mesmo, a não poder despedir-se de ser ele mesmo, nem de ter a si mesmo em processo de vir a ser aquilo que ele mesmo é…

        Ainda que a ciência demonstre que cada decisão humana estava determinada pelas circunstâncias que a enformaram, desde a biologia, à química, desde a cultura, à psicologia, etc., neste momento em que eu me inscrevo, há uma decisão que se impõe. Eu posso estar determinado a escolher A, mas ainda assim, quando estou para me decidir, SOU EU que estou sob o peso da decisão… Há uma heterogeneidade no humano, face ao mundo – mas esta heterogeneidade não se circunscreve no domínio ôntico, mas sim ontológico. Não significa que exista qualquer coisa no homem que escape à química e à física, mas que ser humano é, ainda que se esteja completamente determinado, estar-se condenado a ser livre…

  4. António já não sei bem a quem responder…ainda não percebi é o que significa afirmar que Sartre neste caso, defende o livre arbítrio?

    A ideia que o homem se faz a sim mesmo é gratuita, uma vez que posso nascer e ser médico e morrer um assassino. É daí que surge a ideia de absurdo da existência. Portanto a liberdade é inútil. Parece-me que isto é evidente em “O Ser e o nada”.

  5. Ver pág. 559 do “O Ser e o Nada” – Tradução de Paulo Perdigão. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2001 (9ª):
    “Mostramos que a liberdade se identifica com o ser do Para-si: a realidade humana é livre na exacta medida em que tem-de-ser seu próprio nada. […]
    Assim, não tencionamos de forma alguma falar aqui de algo arbitrário ou caprichoso.[…] Não significa absolutamente que sou livre para me levantar ou sentar, entrar ou sair, fugir ou enfrentar o perigo, se entendemos por liberdade uma pura contingência caprichosa, ilegal, gratuita e incompreensível.” Ou seja: “Claro que cada um de meus actos, por menor que ele seja, é inteiramente nesse sentido que acabamos de precisar; mas isso não significa que possa ser um ato qualquer, ou mesmo que seja imprevisível.” Isto é, como no Relatório Minoritário (o filme), os meus actos são, em tese, previsíveis, no caso de serem conhecidos todos os seus condicionantes.
    “Para a opinião corrente,[…] a escolha é considerada livre se for de tal ordem que houvesse podido ser outra.” A discussão continua (p. 559 em diante) A recolocação do problema é necessária na base da descrição daquilo que é o caso com o humano, na sua situação humana de cada vez aberta aí, no-mundo.

    P. 593 e seguintes: O argumento decisivo empregado pelo senso comum contra a liberdade consiste em lembrar-nos a nossa impotência […], parece que não podemos modificar-nos a nós mesmos. Não sou «livre» para escapar ao destino” – aqui os termos continuam a referir-se a uma noção de liberdade ainda não recolocada na dimensão humana como tal. O humano continua a interpretar-se ainda como se fosse uma “pedra”. Porque o verdadeiro significado de ser livre é “poder realizar os seus projectos”. O senso comum já concorda com isto, diz Sartre, mas ainda mal-interpretando a coisa. É que “ser livre não significa obter o que quiz”… (bem recomendo que se leiam estas páginas, não vou escrevê-las todas) Mas resumindo, a liberdade tal como dela fala Sartre não é insignificante. Na verdade, quer a liberdade de que falam os libertistas e os deterministas exista ou não, a única que verdadeiramente importa é esta. Mesmo que Abraão esteja determinado a matar o filho, no momento da deliberação é ele que suportará o peso da decisão, ainda mesmo antes de perpetrar o acto, e na verdade, independentemente de estar ou não determinado, de vir ou não a fazer seja o que for. Ainda aquele que aceita o determinismo, continua capaz de se adiar a si mesmo, ou de se cumprir. De se perder, ou de se ganhar – e ele sente a luz da realização, e a escuridão da derrota, muito mais do que sente a desculpa que diz a si mesmo afirmando “estava determinado”. Mesmo que o mundo esteja completamente determinado por leis físicas, e mesmo que ele acredite nisso, dificilmente conseguirá viver nos dias antecedentes àquele momento decisivo, crítico, em que ele tomará uma decisão urgente, incontornável, etc….E nesse momento em que ele quereria não ter o peso da decisão, ele percebe (ainda que neste caso ainda de forma imprópria) que “a liberdade não é um simples poder indeterminado”, mas que “não é senhor do facto de que há liberdade”. A liberdade humana é, afinal, essa “falta de ser”, um “buraco no ser”, que significa que o humano é, a cada momento, no seu vir-a-ser aquilo que tem para ser… E, autenticamente, será ser o que que de mais próprio tem para ser. É esta liberdade que nos importa.

  6. Luis, se bem entendi, é esse o significado de ser livre para o Sartre, por sermos nada, não temos como não assumirmos uma posição ou um papel (facticidade). Mas isso não significa termos “livre arbítrio” na expressão do Artur. Daqui segue-se a dificuldade em encontrar uma moral que suporte a existência…um salto para o absurdo da existência e o resto já todos sabemos a história. Só na obra ” L`espoir maintenant” uma série de entrevistas com o B. Levy, quando já está muito velho, Sartre tenta recuar falando de uma espécie de solidariedade entre os humanos.

    1. O “livre arbítrio” (se entendido onticamente) não está em causa, porque não é esse o problema em Sartre, como o não é em Heidegger, como o não é, penso, em nenhum existencialista…
      Muito antes de ser velho, o conceito de engagement de Sartre é bem conhecido. Podemos ver isso nos romances, nos “Caminhos da Liberdade”, nos dramas.

      A questão é compreender que se trata de uma análise daquilo mesmo que é o caso. O livro arbítrio é que é irrelevante, na medida em que seja ele de facto, ou seja ele uma ilusão, o humano encontra-se a si mesmo desde sempre lançado no mundo.

      Se amanhã os cientistas fossem à TV mostrar que finalmente provaram o Determinismo mais rigoroso possível, as pessoas continuariam a tomar as suas decisões, e sofrer o peso da liberdade que sempre encontraram em si mesmas. A prova do determinismo influenciaria as pessoas na medida em que elas o iriam compreender desta ou daquela forma, e deixar-se influenciar por isso.

      A dificuldade de uma ética que suporte a existência… esta é sempre presente no humano excepto quando ele aceita (escolhe, acolhe) um dogma, um conjunto de dogmas… não há outra forma. Simplesmente, aquele que está consciente disto pode sentir que o vínculo entre ele e as suas decisões está mais fraco por saber que é ele que o estabelece, e não um Deus que o doa.

      Claro que esta é a questão: a existência, o seu sentido, o que fazer dela, o problema dos fins, se podem ou não ser decididos, o suicídio, etc. Mas o facto de o abismo dificultar seja o que for, não faz com que ele não esteja lá. Quando muito, poderá dizer-nos que valia mais não o termos conhecido!

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