ARGUMENTAÇÃO 1. a argumentação

A argumentação, lógica, filosofia

Este é o primeiro texto de uma série, escrita a pensar nos alunos de Filosofia do ensino secundário, no pressuposto de que lhes poderá ser útil. Por razões que (nem só) eles sabem, começo com o tema da argumentação e, neste primeiro texto, tentando esclarecer o que é (e não é) a argumentação.
  1. No romance Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway,

    [cuja acção decorre na Espanha em guerra civil],

    um personagem diz que

    Os ciganos acreditam que o urso é irmão do homem porque, tirada a pele, tudo é igual e também porque o urso bebe cerveja, gosta de música e sabe dançar” [Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, p. 43].

    Aqui está um pequeno texto argmentativo. Nele se apresentam razões

    [se são razões aceitáveis ou não, isso é outra coisa…]

    com as quais se pretende mostrar a verdade ou a sustentabilidade de uma posição/tese/conclusão. No exemplo anterior, a conclusão de que o urso é irmão do homem — e as razões estão introduzidas por “porque”.
  2. O seguinte extracto do mesmo romance, onde aparece um dos personagens centrais do enredo

    [Jordan, encarregado de fazer voaruma ponte no momento em que as tropas republicanas atacarem Segóvia]

    não é argumentativo: nele não se defende qualquer tese — é uma pura descrição:

    Agora era bem uma manhã dos fins de Maio, céu límpido e alto. Um vento tépido aquecia os ombros de Jordan. A neve derretia-se rapidamente enquanto almoçavam. Vieram duas grandes sanduíches de carne e uma boa fatia de queijo de cabra para cada um, e Robert Jordan tinha cortado com a navalha grossas fatias de cebola que tinha posto de cada lado da carne e do queijo entre os pedaços de pão“. (p. 277)

  3. À proposição que queremos defender chamamos conclusão. Às proposições que apresentam as razões para essa conclusão chamamos premissas. Num diálogo com Anselmo

    [um velho espanhol que conhece a zona onde Jordan vai actuar e por isso o guia]

    sobre se é permitido matar pessoas

    [e comparando o acto de matar pessoas com a caça de animais],

    Jordan defende que devemos matar os inimigos de guerra (conclusão) porque, se eles sobrevivessem, “voltariam a escravizar-nos” (premissa). Anselmo contra-argumenta, admitindo que em situação de guerra ele também mata, embora sem prazer, mas “considerando isso um pecado”, isto é, segundo ele não se deveria matar (conclusão): “porque da semente nasceria ainda mais ódio. […] E o que os nossos inimigos precisam é de aprender” e para isso precisam de estar vivos (premissas). (p. 45)
  4. Com base nos parágrafos anteriores, vamos explicitar as características de base da argumentação:
    • a argumentação é um processo onde intervêm várias pessoas (é um fenómeno social): nos exemplos anteriores, Jordan e Anselmo. É a esta característica que nos referimos, quando por vezes dizemos que toda a argumentação se desenvolve em função de um auditório.

      E quando, digamos, argumentamos sozinhos, connosco? nesses casos, é como se estivéssemos divididos em dois interlocutores. É o que acontece com Jordan, num momento em que ele, intimamente, se sente “cair na melancolia” e confronta esse estado sombrio com um modo alegre de estar na vida: digamos, é um Jordan como se fossem dois! 🙂 No final conclui (cá vai o argumento — qual(s) a(s) premissa(s) e qual a conclusão?):

      Todos os bons e firmes são alegres (…). É muito melhor ser alegre que é sinal de uma coisa: de uma imortalidade terrestre“;

    • com a argumentação pretendemos exercer influência sobre outra(s) pessoa(s), de modo a conseguir a sua adesão a uma tese (isso mesmo! à conclusão). Não se argumenta a favor de [ou contra] algo que é evidente ou quando não há qualquer desacordo entre as várias pessoas. Para dar um exemplo extremo

      [e possivelmente ridículo]:

      não há necessidade de mostrar que este texto está aqui escrito; mas será necessário provar que é um texto bom

      [a menos que o leitor me poupe esse trabalho, por concordar comigo ;-)].

      A argumentação supõe, por isso, a possibilidade de um acordo

      [de um acordo final: se não admitíssemos a hipótese desse acordo, estaríamos a argumentar para quê? seria pura perda de tempo… E de algum acordo inicial: ninguém consegue discutir com alguém com quem não esteja minimamente de acordo nalguns pontos — ou não é? Quando Jordan chega a Espanha, encontra Pablo que não concorda com a destruição da ponte, porque isso fará as pessoas do sítio virarem-se contra eles; mas ambos estão de acordo quanto à causa republicana e na luta contra as tropas franquistas].

      Mas supõe igualmente a divergência de pontos de vista dos vários intervenientes. Para a perceber bem, basta aplicar esta ideia a situações exemplares de argumentação: os debates eleitorais

      [bem… alguns debates acabam por ser pouco exemplares: às vezes mais parecem conversa de bêbados…],

      os debates parlamentares, os julgamentos em tribunal onde defesa e acusação se confrontam, etc.;

    • a argumentação, na medida em que exige elementos de prova da tese defendida, é um processo que comporta elementos racionais. Uma tese argumentada está no oposto de uma tese imposta pela força: um dos pressupostos fundamentais da argumentação é, por isso, a democracia

      (num sentido geral do termo: a situação em que a “argumentação” da força é substituída pela força da argumentação. A cena do pai que impõe uma decisão ao filho acrescentando apenas “e acabou!”, não é propriamente o melhor exemplo de situação argumentativa…).

      Por comportar elementos racionais é que a argumentação está intimamente ligada ao raciocínio e à lógica — como procurarei mostrar nos próximos textos.

  5. Como diria La Palice

    [o tal que, se não estivesse morto, estaria vivo],

    uma boa argumentação requer bons argumentos. O que é um bom argumento? Tentarei responder a esta pergunta no texto seguinte.

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