O grande destaque do nº 176 (janeiro-abril/2011) da revista Colóquio-Letras é a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Textos vários de vários autores incluem quatro depoimentos: um deles, o de Gastão Cruz, revela-nos um jovem (o autor) em processo de encontro com a poesia e uma poesia (a de Sophia) que estabelece “uma relação intensa da linguagem com o mundo”; porque “não podia haver poesia mais poética que a de Sophia, mas essa pureza pouco ou nada tinha a ver com o velho e um tanto gasto conceito de poesia pura”.
Segue-se esse depoimento:
<Coral» e «Mar Novo» na descoberta de Sophia e da poesia
[GASTÃO CRUZ]
No meu exemplar da primeira edição de Mar Novo escrevi a data de 16 de junho de 1959, cerca de um mês antes de completar dezoito anos.
O livro saíra no ano anterior, em junho de 1958, na coleção Poesia e Verdade, da Guimarães Editores, trazendo a indicação «Todos os exemplares são assinados pela autora.» E lá vinha, por baixo, o nome, apenas o primeiro, Sophia, inscrito pela própria.
A aquisição de Mar Novo e a sua leitura inseriram-se no processo do meu encontro com a poesia, que vinha tomando forma, desde não muito tempo antes, e em que «Ode Marítima» fora, entre outros, um momento decisivo. O ano de 1958, já o tenho dito, com o aparecimento, além de Mar Novo, de obras como O Grito Claro (António Ramos Rosa), Fidelidade (Jorge de Sena), ou Coração do Dia (Eugénio de Andrade), trouxera uma forte contribuição a essa descoberta.
Tive, pouco depois, acesso à primeira edição de Coral (Livraria Simões Lopes, 1950), que a Fiama possuía:
Sei que estou só e gelo entre as folhagens
Nenhuma gruta me pode proteger
Como um laço deslaça-se o meu ser
E nos meus olhos morrem as paisagens.Desligo da minha alma a melodia
Que inventei no ar. Tombo das imagens
Como um pássaro morto das folhagens
Tombando se desfaz na terra fria.O mundo de Sophia de Mello Breyner ia-se mostrando, aos meus olhos, como uma superlativa evidência do que podia ser a poesia, numa época em que tantas dúvidas ainda me perturbavam acerca da sua presença ou ausência nos textos que me era dado ler.
Estávamos bem longe de alguns contemporâneos preconceitos (que já começam, de resto, a ser largamente postos em causa) contra o poético, os quais somente mascaram uma notória incapacidade de inovar e de reinventar um poder para a palavra e para a imagem.
É claro que não podia haver poesia mais poética que a de Sophia, mas essa pureza pouco ou nada tinha a ver com o velho e um tanto gasto conceito de poesia pura. Ela estabelecia uma relação intensa da linguagem com o mundo — e o mundo tanto poderiam ser as ondas e a claridade da praia da Granja, como (o que já em Mar Novo, um livro de transição para uma poesia mais referencial e citadina, acontecia) as «mulheres lavando a loiça em frente das janelas» do «Noturno da Graça».
Sabemos como Sophia fulgurantemente teorizou sobre este tema: as «Artes Poéticas» constituem um instrumento privilegiado, não apenas de acesso à sua poesia, à natureza da sua poesia, mas a toda a poesia, àquilo que, recorrendo a uma terminologia muito usada nas décadas de 1950 e 1960, poderíamos designar por fenómeno poético.
O primeiro livro publicado por Sophia de Mello Breyner Andresen, em 1944, chamava-se Poesia. Penso que esse título (e tanto mais, se considerado agora em função do conjunto da obra) dizia tudo acerca daquela ideia de poesia como «real absoluto», lema da coleção da Ática onde Poesia surge na 2a edição (a primeira tinha sido uma edição da autora); nas palavras de Novalis: «Je poetischer, je wahrer» («Quanto mais poético, mais verdadeiro») — uma coisa que alguns poetas e críticos recentes poderiam (deveriam) (re)aprender.
O conceito de unidade entre a palavra e o mundo, ou a palavra e a vida, que a poesia implica, é admiravelmente formulado nas «Artes Poéticas» e nunca será excessivo citar, mais uma vez, a passagem lapidar em que o essencial está dito: «O verso é denso, tenso como um arco, exatamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exatamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.»
A unidade da poesia com o mundo é o que salva o poeta do «tempo dividido», o que o impede de se perder do que era (é) eterno.
Lemos n’O Búzio de Cós: «Amei a vida como coisa sagrada / E a juventude me foi eternidade» — «vida» de que «mar» pode ser o sinónimo e a imagem. Por isso o «marinheiro sem mar», de Mar Novo, ao perder o mar se perde no tempo dividido: «Porque ele se perdeu do que era eterno / E separou o seu corpo da unidade / E se entregou ao tempo dividido / Das ruas sem piedade.»
(Atualização da grafia do texto de Gastão Cruz, segundo o último Acordo Ortográfico).