A vagueza

Genericamente, o discurso dos políticos profissionais sofre do mal de vagueza.

  1. Ouço cada vez mais a frase “ó pá, estás a ficar careca!”. Afortunadamente, costuma haver nas redondezas uma alma indignada que

    [por caridade ou por não ter altura suficiente para me ver o círculo tonsurado do cocuruto da cabeça],

    trata de me defender: “mas ele ainda tem tanto cabelo!”.

    Careca é o exemplo típico de um termo vago. Um termo é vago quando não está totalmente determinado se um objeto pertence ao conjunto por ele denotado

    [no exemplo dado, não é possível a todos os que falam o português determinar se eu pertenço ou não ao conjunto dos carecas].

    Dito de outro modo: a frase “Tu és careca”, por conter o predicado vago careca, não é –  ou parece não ser – determinadamente verdadeira ou falsa.

  2. O termo vago careca pertence a um grupo de termos pelos quais os filósofos nutrem um gosto especial. Neste caso, careca é famoso pelas suas ligações ao paradoxo Sorites

    [bela ilustração das dificuldades que a vagueza pode gerar].

    Um paradoxo surge quando temos um conjunto de premissas aparentemente indiscutíveis mas delas se inferem conclusões que se contradizem ou uma conclusão inaceitável.

    Para entender o paradoxo “sorites”, imaginemos um homem totalmente calvo. Se o pensarmos agora com um cabelo, será obviamente ainda calvo. Com mais um cabelo, também. E com um terceiro, ainda… e assim sucessivamente, se formos juntando um cabelo de cada vez. Conclusão: não é a adição de um cabelo que faz um não careca. Para sermos ainda mais explícitos (e afirmarmos algo que parece inaceitável), nunca poderemos ter um homem não careca

    [pode seguir-se um processo inverso, partindo de uma farfalhuda cabeça, claramente não careca: tirar um cabelo não a torna careca, nem um segundo, nem um terceiro… Conclusão: não é a subtração de um cabelo que faz uma careca. Pelo que… nunca poderemos ter uma careca].

  3. Vermelho é outro termo vago: o vermelho admite tonalidades, o que torna complicado, nalguns casos, decidir se esta camisola é vermelha.Tudo parece apontar para que a vagueza seja uma característica inevitável das línguas. As palavras são polissémicas, têm mais do que um significado. Por outro lado, o significado das palavras (todas?) não está pré-estabelecido, mas constrói-se

    [sem que deixe de ser vago em todos os casos]

    na polémica interativa dos falantes da língua. Assim, o Benfica não é um clube vermelho, mas encarnado; e a cor dominante da bandeira do PC não é o encarnado, mas o vermelho. O que é que, na realidade, realmente distingue vermelho de encarnado?

  4. Não obstante a presumível inevitabilidade que associa vagueza e língua, sempre que possível, a informação transmitida deve ser precisa, rigorosa

    [como, a ser possível, determinar quantitativamente o conceito de careca].

    Dificilmente, na resposta “já tenho uns anotes”, se vê outro objetivo que não seja o de… não responder à pergunta pela idade. Ou o de, manhosamente, permitir (futuras) interpretações diversas.

    A necessidade de anular, o mais possível, a vagueza do discurso resulta de uma exigência ética: o respeito pelo interlocutor. Só a clareza permite que este discuta as nossas ideias e, quando for o caso, nos exija coerência (e, eventualmente, responsabilidades).

    Na discussão sobre as taxas moderadoras, é recorrente a discussão sobre a gratuitidade do serviço nacional de saúde. Onde está o problema? Na vagueza do conceito discutido. Gratuito não parece predicado vago: gratuito é algo pelo qual se não paga nada. O problema é que a Constituição determina que esse serviço é tendencialmente gratuito. Tendencialmente gratuito é uma expressão vaga, sem determinação quantitativa, que permite múltiplas interpretações.

  5. O que “contamina” o discurso político profissional é que a sua vagueza é propositada. Além disso, o que frequentemente torna esse discurso vago é a presença de pressupostos implícitos, só posteriormente enunciados de forma explícita.É público que, na última campanha eleitoral, Passos Coelho rejeitou a subida de impostos, de um modo que parecia excluir qualquer vagueza

    [tendo recusado a negociação prévia do orçamento para 2011, por este incluir aumento de impostos]:

    em palavras do próprio, “Não é preciso fazer mais aumento de impostos“. Também é pública a justificação para o aumento que não tardou, logo após a constituição de governo com o CDS: a existência de desvios orçamentais desconhecidos. Bem… o que Passos Coelho disse

    [ou entrementes entendeu que queria dizer]

    não foi o que lhe ouvimos, mas isto: “Não é preciso fazer mais aumento de impostos, se não houver desvios orçamentais“.

  6. Numa outra perspetiva: a vagueza do discurso torna-o infalsificável. Uma afirmação é falsificávelse houver maneira de mostrar empiricamente que ela é falsa, ainda que não seja falsa. Por exemplo, “Todos os governos em que houve aumentos de impostos foram governos do PS” é falsificável: isso é falso se verificarmos a existência de um governo que aumentou impostos e não era governo do PS. Contrastemos esse exemplo com um outro. Recentemente, Passos Coelho garantiu: “Disse-o com clareza no Parlamento e volto a reafirmá-lo: Não pediremos mais tempo nem mais dinheiro para concretizar o programa” acordado com a troika. Ouvida assim, “Não pediremos mais tempo nem mais dinheiro” soa a afirmação refutável: será falsa se o governo pedir mais tempo ou mais dinheiro. Só que, nos desenvolvimentos dessa afirmação, sub-repticiamente, acrescentou-se uma condição: a não ser pela ação de razões externas. A expressão razões externas é, neste contexto, suficientemente vaga para justificar qualquer pedido de mais tempo e/ou mais dinheiro – suficientemente vaga para tornar a garantia do primeiro-ministro infalsificável. Fator externo (à atuação do governo) pode, por exemplo, ser a atual seca, que ameaça a agricultura – e, portanto, o programa. Pode ser (ou não) o “comportamento dos mercados”. Podem ser (ou não) as greves com que os trabalhadores ameaçam a economia e… o cumprimento do programa. Pode ser uma lista imensa e indefinida: é a indefinição que pinta o rosto da vagueza.

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Segundo as orientações do Ministério da Educação para o exame final optativo de Filosofia, devem ser abordadas algumas falácias. Outros textos sobre falácias:

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