Falácia da derrapagem ou bola de neve

No filme Planeta dos Macacos: A Origem, o cientista Will Rodman (James Franco), na procura de uma cura para o mal de Alzheimer, cria uma droga chamada ALZ-112. Porém, essa droga possui um efeito curto, e depois de algum tempo o corpo consegue produzir anticorpos que acabam com o efeito do vírus ALZ-112. O vírus causa uma neurogénese, aumentando o QI dos símios.

É um filme que levanta o problema dos limites das investigações científicas, apontando para a problematização dessas investigações a partir da ideia de que o cientista não pode brincar a ser Deus: Deus é que cria/criou os seres e é perigoso que o Homem queira tomar o Seu lugar na criação

[a propósito deste assunto, pode ler aqui uma entrevista com James Franco, segundo quem “Brincar de Deus pode, sim, ser bom”].

Esta é uma argumentação (contra a investigação científica) típica: é a falácia da derrapagem (ou “bola de neve“):  para mostrar que uma proposição (P) é inaceitável, extraem-se consequências dela e consequências das consequências (cá está a bola de neve!)… chegando-se a uma consequência inaceitável (Q) (por isso se chama também falácia da derrapagem).

Um exemplo “clássico” dessa argumentação é este: se se legalizasse a marijuana, toda a gente a iria experimentar, e a seguir começariam a experimentar as drogas pesadas e não tardaria que a nossa sociedade se transformasse numa sociedade de drogados

[sugiro um exercício semelhante, com o filme anterior (… A origem): formalize o argumento onde se recuse a investigação biomédica utilizando a imagem de brincar a Deus].

Portanto, nas “derrapagens” afirma-se que, se um determinado acontecimento ocorresse, outros acontecimentos perigosos ou prejudiciais ocorreriam depois inevitavelmente, pelo que não se deve permitir o primeiro. É uma argumentação com uso destacado nos debates sobre questões morais como a já referida investigação médica, a eutanásia, a intervenção humana sobre o meio ambiente ou outras espécies não humanas…

A favor da pena de morte argumenta-se muitas vezes com uma sequência de atos que leva, passo a passo (neve em cima de neve… ;-)), até consequências indesejáveis ou mesmo catastróficas. Por exemplo, Louis P. Pojman defende assim a pena capital:

Quando a sociedade é incapaz de punir os seus criminosos de uma forma que seja proporcional à gravidade do crime, surge o perigo do público fazer justiça pelas próprias mãos, dando origem à justiça vigilante, aos grupos de linchamento e a actos privados de retribuição. O resultado é provavelmente um estado de injustiça anarquista e inseguro. Como tal, a retribuição legal surge como a guardiã da aplicação ordeira do castigo merecido.

(copiado daqui)]

O meu leitor poderá observar que este último exemplo (e talvez mesmo os anteriores) não apresentam uma conclusão necessariamente falsa; quando muito, será apenas discutível. Na verdade,

  1. este tipo de argumentação não é necessariamente falacioso: é-o apenas quando pelo menos um dos seus passos é falso ou duvidoso
    (proponho-lhe que analise o argumento de brincar a Deus, aplicado ao filme referido no início: há algum passo falso ou duvidoso?);
  2. mesmo quando falaciosa, esta argumentação é, em muitos casos, convincente — razão por que é muito usada, nos debates morais ou políticos, não obstante o desprestígio de que goza entre os filósofos. E porquê?
    1) tais argumentos alertam-nos para eventuais situações de risco resultantes de determinados atos (por exemplo, as medidas negativas que o governo tem vindo a tomar, como cortes de subsídios ou diminuição de salários, são justificadas com a necessidade de evitar a bancarrota do país);
    2)  estes argumentos são constituídos por uma sequência de pequenos passos
    (sugerindo que as consequências indesejáveis não acontecem de repente mas chegam pouco a pouco, devendo atuar contra logo de início, cortando o mal pela raiz),
    de tal modo que os saltos ilegítimos com facilidade passam despercebidos. As atenções focam-se na conclusão, “comprovadamente” negativa — e, por isso, descura-se a ligação entre os vários pequenos passos, entre as várias consequências. Digamos que, por vezes, se trata de um mau argumento sobre boas razões.

Para reforçar a força desta argumentação, particularmente em casos “dramáticos”, usam-se, muitas vezes, imagens

[além da invocação do passado, como a semelhança entre o atual período de crise e a crise que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. É preciso, portanto,– conclui-se — agir de modo a evitar outra guerra!).

Ouvimos constantemente os políticos atuais falar do contágio da crise do país A ao país B (como se se tratasse de uma doença contagiosa). A caixa de Pandora

(um dia destes, escrevo um textinho sobre esta caixa ;-))

também é muito convocada: para rejeitar a suspensão da avaliação dos professores, José Ferreira Machado escreveu no jornal Sol de 1 de Abril de 2010:

Mas a iniciativa de suspender a avaliação dos professores é um começo que augura o pior: um piscar de olhos ao facilitismo que apenas poderá abrir uma caixa de Pandora reivindicativa que destruirá qualquer possibilidade de rigor na condução da economia. A credibilidade leva muito tempo a construir, mas destrói-se num segundo.

(Onde está a bola de neve, neste pequeno extrato?)

Pelas razões expostas, a avaliação destes argumentos (saber se são ou não falaciosos) nem sempre é fácil

[porque não é fácil avaliar uma sequência imperfeita de razões que são apresentadas passo a passo, por pequenos passos].

Ao avaliá-los, a questão fundamental há de ser esta: na série de consequências, o acontecimento final (Q) tem de ocorrer como consequência (necessária) do acontecimento inicial (P)? Por exemplo: a ideia de “querer ser como deuses” não será o resultado do medo (infundado), da insegurança face a algo desconhecido como é a investigação biomédica? não será possível evitar “jogar com o fogo” (outra imagem comum) através da sua regulação legal? ou de recomendações de prudência?…

Bem… de qualquer modo, em casos difíceis, a “bola de neve”, mesmo que falaciosa, continuará certamente a desempenhar uma função importante; porque nem sempre a verdade e a validade coincidem; e porque, frequentemente, para os intervenientes numa discussão — ou negociação — o importante é vencer e a bola de neve, como já ficou dito, constitui uma arma com uma força não desprezível para ganhar o combate (sem terem consciência disso, ou tendo-a, os políticos sabem-no).

*****

» Este texto supõe que o leitor sabe o que é uma falácia. Esse conceito explica-se aqui.

» Segundo as orientações do Ministério da Educação para o exame final optativo de Filosofia, devem ser abordadas algumas falácias. Outros textos sobre falácias:

2 thoughts on “Falácia da derrapagem ou bola de neve”

  1. Olha, eu não acredito que essa técnica seja algo ruim, mas algo neutro. Vai depender do contexto. Por que realmente da pra prever que uma ideia é capaz de trazer consequências desastrosas, basta fazer uso de lógica e dos fatos. Por exemplo, politica, os ateus chegam e alegam que há vários religiosos cristãos e fanáticos na sociedade, e que eles precisam ser combatidos, aí através da ciência o ateu vai fazer de tudo para refutar o cristão, por que segundo ele (Argumento de bola de neve) uma atitude de um cristão vai levar a outra coisa, e vai manipular as pessoas, e mais pessoas, e mais, e mais, até que vai-se ter uma sociedade onde o indivíduo não possa optar por não ter uma religião, mas o que vai acontecer? Haverá militância ateísta por causa disso (Isso existe hoje nos EUA), e então os cristãos terão vergonha de se expor pq sempre haverá um ateu para atacá-lo em público. E aí, eu usei argumento de bola de neve? Talvez não, por que isso já acontece e muito nos EUA, tanto que agora estão idolatrando os muçulmanos e falando mal dos cristãos.
    Por falar em EUA, aqui vai um artigo meu sobre os melhores mercados de pulgas (Flea Markets) dos Estados Unidos:
    Best Flea Markets In America
    Obrigado pela atenção

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