O apelo à emoção nos argumentos

Quando, em Lógica, tratamos de argumentos, parece que apelamos apenas à razão (a que os gregos chamavam logos) e não aos sentimentos, à emoção (a que os gregos chamavam pathos). Quando argumentamos, apresentamos razões (razões, sublinho) a favor de uma conclusão. A questão é saber até que ponto os sentimentos podem apoiar validamente uma conclusão que pretendemos defender.

Há um conjunto de argumentos que apelam ao pathos (à emoção) e não ao logos (à razão): poderíamos, por isso, chamar-lhes patéticos 

[e não me contrariem, porque eu levei muito tempo a pensar nisto, para escrever este texto; pelo que, se me contrariassem, estariam a desvalorizar o meu trabalho! — cá está um exemplo deste tipo de argumentos ;-)].

E eu volto à pergunta inicial: então, apelar aos sentimentos é errado?

Pensemos na mãe que pede ao filho que não faça algo para não desgostar o pai: estará isto errado? Ou seja, não desgostar o pai não pode ser razão suficiente para o filho não fazer algo? no caso de ser, a argumentação da mãe será (mesmo assim) falaciosa?

Vamos supor uma situação semelhante à anterior:

a mãe que pede ao filho que abandone determinadas ideias para não desgostar o pai.  Pergunto: apesar de semelhante, trata-se de uma situação diferente ou é igual? isto é, não desgostar o pai pode ser razão suficiente para alguém deixar de pensar como pensa?

Este tipo de argumentos é muito usado no quotidiano, particularmente quando se pretende “mobilizar” alguém: servem para despertar respostas irracionais, já que muitas pessoas se deixam “levar” mais facilmente pelos sentimentos do que pelo pensamento crítico. Além disso, é igualmente mais fácil construir “argumentos patéticos” (e, nalguns casos, patetas) do que argumentos cogentes. Encontramos belos exemplos do que acabo de escrever, tanto entre os políticos como entre os publicitários

[acha que o “cartaz publicitário” reproduzido ao lado pode ser exemplo disso? explicite o “argumento” nele implícito],

em circunstâncias que envolvem grandes públicos: manifestações de protesto, assembleias sindicais ou religiosas (com a invocação de sentimentos como a solidariedade ou a compaixão ou o medo ou preconceitos étnicos como o racismo ou a xenofobia)…

 

O apelo à piedade (ou à emoção, também conhecido pela expressão latina argumentum ad misericordiam) faz parte da lista dos argumentos patéticos. Consiste em apelar à compaixão para conseguir a aceitação de uma conclusão.

Este argumento é falacioso, sempre que coloque em primeiro plano as emoções da audiência, em vez das razões do próprio argumento — sempre que os sentimentos invocados não sejam relevantes para apoiar o que se quer defender. Assim e como exemplo, Luís Rodrigues pede, numa ficha sobre lógica informal, a análise deste argumento:

A vaga para o lugar de professor de Matemática no colégio Logaritmo deve ser dada ao Francisco. Com efeito, ele tem seis filhos para educar e alimentar e a sua mulher está também desempregada.

A resposta dele é que é um argumento que apela à piedade de modo falacioso, porque “omite-se o que seria relevante, a competência de Francisco para ocupar o lugar, e invocam-se os problemas financeiros e familiares, irrelevantes” para a ocupação da vaga.

O texto Violência contra crianças e discurso jurídico apresenta casos de processos judiciais onde se registam apelos à piedade, utilizados não só pelo réu mas também pelo juiz: exaltam-se “certas características presentes na situação do crime com o objetivo de provocar reações emocionais. Nos casos analisados, recorreu-se a situações de pobreza, ignorância e solidão para justificar os atos praticados pelos acusados”. “Em geral, expressões como “emocionalmente abalado”, “sob forte emoção”, “tendo se sentido traído” são utilizadas para que se consiga um sentimento de piedade e compaixão para com o réu”.

argumentos não falaciosos, ​​com base em apelos à piedade: isso acontece quando o sentimento de piedade invocado na(s) premissa(s) for boa razão para aceitar a conclusão. O manual A arte de pensar: 11º ano (Didáctica Editora) tem um bom exemplo, a propósito (negritos meus):

Considere-se o seguinte argumento: O Asdrúbal devia gostar mais das aulas de filosofia porque o professor, coitado, esforça-se imenso. Este argumento é uma falácia do apelo à piedade porque o sentimento de piedade que se invoca na premissa não é uma boa razão para aceitar a conclusão. A premissa não dá qualquer razão para o Asdrúbal gostar mais das aulas de filosofia; mas dá uma razão para o Asdrúbal admirar o esforço do professor, por exemplo.

O apelo à piedade, a existir, deve ser um “complemento” das razões e não o “núcleo” do argumento. Analise o argumento que se segue: independentemente de se configurar uma falácia da derrapagem (veja aqui o que é isso),  o apelo à piedade nele feito é legítimo ou falacioso?

“Ó senhor guarda, bem sei que cometi uma infração. Mas, por favor, perdoe-me. Não me multe: é que hoje não ando bem, tenho a minha mãe muito doente. Além disso, esse dinheiro faz-me muita falta, porque sou a única fonte de rendimento para sustento da minha mãe, dos meus filhos, e da minha mulher, que está desempregada sem subsídio. E também não posso ficar sem a carta de condução, que sou motorista profissional”.

Notas:

Pretexto para a publicação deste texto: o tema Argumentação e retórica do programa atual (ano letivo 2014/15) do 11º ano de Filosofia.

Segundo as orientações do Ministério da Educação para o exame final optativo de Filosofia, devem ser abordadas algumas falácias:

8 thoughts on “O apelo à emoção nos argumentos”

  1. “A vaga para o lugar de professor de Matemática no colégio Logaritmo deve ser dada ao Francisco. Com efeito, ele tem seis filhos para educar e alimentar e a sua mulher está também desempregada.”

    este argumento também não pode ser uma falácia ad hominem?

  2. Há algum tempo que era para deixar aqui um comentário, mas sempre é melhor tarde do que nunca, como se costuma dizer.

    Quanto aos apelos às emoções, tenho três coisas a dizer e que me parecem não ficar claras no que se diz acima.

    A primeira é que as emoções a que apelamos são as emoções do interlocutor que queremos que aceite a nossa conclusão, o que não se passa nos exemplos dados sobre a mãe que diz ao filho para não fazer algo para o seu pai não ficar triste. A emoção aqui invocada é a do pai e não a da pessoa que queremos convencer, pelo que não se trata, em rigor, de um apelo às emoções, a não ser de forma indirecta (no caso em que é suposto o filho também ficar triste sempre que o pai fica triste).

    O segundo aspecto é que, para estarmos perante um apelo às emoções não precisamos sequer de referir ou de nomear qualquer emoção, pois basta suscitar a emoção do interlocutor de modo a aderir à conclusão com base nisso. Pense-se, por exemplo, no seguinte apelo à piedade: «O professor dê-me positiva, pois se não passar perco o subsídio da escola». Apela-se aqui ao sentimento de pena do professor, de modo a convencê-lo a dar positiva ao aluno. Ora, não há aqui qualquer referência a qualquer emoção. Quem argumenta (o aluno) apenas visa suscitar no seu interlocutor (o professor) o sentimento adequado às suas pretensões.

    Em terceiro lugar, nem todos os apelos a emoções são falaciosas. Por exemplo: “Não digas aos meus amigos que estou gravemente doente, pois isso faz-me sentir muito mal».

    O que vos parece?

  3. Aires, obrigado pelos esclarecimentos. Concordo com tudo o que escreveste. Ou antes, quase tudo ;-); talvez não nisto: parece-me que os teus comentários não estão em desacordo com o texto, embora admita que podem torná-lo mais claro e realçar as ideias principais.

    1. É claro que “as emoções a que apelamos são as emoções do interlocutor que queremos que aceite a nossa conclusão”; nem poderia ser de outro modo, dado que é esse interlocutor (a “audiência”, para usar um termo do texto e preferido por certa bibliografia) que queremos convencer;

    2. assim, no exemplo da mãe que tenta convencer o filho, os sentimentos que interessam não são, de facto, os do pai, mas os do filho, embora não sejam os explicitamente referidos (e nem precisam de o ser, como tu sublinhas);

    3. também estamos de acordo em relação ao 3º ponto. Uma das questões abordadas no texto é essa: “até que ponto os sentimentos podem apoiar validamente uma conclusão que pretendemos defender”; explicitamente formulada: “apelar aos sentimentos é errado?” E a resposta: a) “(…)é falacioso, sempre que (…)sempre que os sentimentos invocados não sejam relevantes para apoiar o que se quer defender”; b) “Há argumentos não falaciosos, ​​com base em apelos à piedade: (…)”

    Que te parece? 😉

  4. Sim, concordamos. Há casos em que os apelos à piedade são apelos a… motivos, digamos assim, e casos em que se trata de apelos a razões. Isto porque, em certos casos, os sentimentos são, eles próprios, boas razões.

    Por exemplo, uma boa razão (mesmo que haja outras) para não expôr publicamente os vícios privados de alguém é o não envergonhar essa pessoa.

  5. Ainda mais tardio!

    Nestas coisas os contextos podem ser manhosos. Regressemos ao exemplo dos 6 filhos e mulher desempregada. Não será um bom argumento para *desempatar* entre candidatos tecnicamente empatados?
    (Talvez não: um tipo com esses 7 problemas é capaz de não render tanto no trabalho)

  6. Capeta do Inferno

    “Não foi provado que os fetos possuem consciencia. Como você pode defender a vida deles contra a vontade da mãe? buááá!!”

  7. eu as vezes fico com duvidas sobre essa matéria, pois estou no meu ultimo ano de 12ºano de escolaridade no 1ºgrupo mas eu já estou percebendo esses dias sobre os apelos e as falacias

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